Palavras ditas ...

Se eu gosto de poesia?
Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor... Acho que a poesia está contida nisso tudo."
Carlos Drumond de Andrade

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Aqui eu te amo

Nos escuros pinheiros se desenlaça o vento.
Fosforesce a lua sobre as águas errantes.
Andam dias iguais a perseguir-se.

Define-se a névoa em dançantes figuras.
Uma gaivota de prata se desprende do ocaso.
As vezes uma vela. Altas, altas, estrelas.

Ou a cruz negra de um barco.
Só.
As vezes amanheço, e minha alma está úmida.
Soa, ressoa o mar distante.
Isto é um porto.
Aqui eu te amo.

Aqui eu te amo e em vão te oculta o horizonte.
Estou a amar-te ainda entre estas frias coisas.
As vezes vão meus beijos nesses barcos solenes,
que correm pelo mar rumo a onde não chegam.

Já me creio esquecido como estas velha âncoras.
São mais tristes os portos ao atracar da tarde.
Cansa-se minha vida inutilmente faminta..
Eu amo o que não tenho. E tu estás tão distante.

Meu tédio mede forças com os lentos crepúsculos.
Mas a noite enche e começa a cantar-me.
A lua faz girar sua arruela de sonho.

Olham-me com teus olhos as estrelas maiores.
E como eu te amo, os pinheiros no vento,
querem cantar o teu nome, com suas folhas de cobre.

Pablo Neruda

terça-feira, 28 de junho de 2011

Dez chamamentos ao amigo

I

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo.
Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há um tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

II

Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me.
E eu te direi que o nosso tempo é agora.
Esplêndida altivez, vasta ventura
Porque é mais vasto o sonho que elabora
Há tanto tempo sua própria tessitura.
Ama-me. Embora eu te pareça
Demasiado intensa. E de aspereza.
E transitória se tu me repensas.

III

Se refazer o tempo, a mim, me fosse dado
Faria do meu rosto de parábola
Rede de mel, ofício de magia
E naquela encantada livraria
Onde os raros amigos me sorriam
Onde a meus olhos eras torre e trigo
Meu todo corajoso de Poesia
Te tomava. Aventurança, amigo,
Tão extremada e larga
E amavio contente o amor teria sido.

IV

Minha medida? Amor.
E tua boca na minha
Imerecida.
Minha vergonha? O verso
Ardente. E o meu rosto
Reverso de quem sonha.
Meu chamamento? Sagitário
Ao meu lado
Enlaçado ao Touro.
Minha riqueza? Procura
Obstinada, tua presença
Em tudo: julho, agosto
Zodíaco antevisto, página
Ilustrada de revista
Editorial, jornal
Teia cindida.
Em cada canto da Casa
Evidência veemente
Do teu rosto.

V

Nós dois passamos. E os amigos
E toda minha seiva, meu suplício
De jamais te ver, teu desamor também
Há de passar. Sou apenas poeta
E tu, lúcido, fazedor da palavra,
Inconsentido, nítido
Nós dois passamos porque assim é sempre.
E singular e raro este tempo inventivo
Circundando a palavra. Trevo escuro
Desmemoriado, coincidido e ardente
No meu tempo de vida tão maduro.

VI

Foi Julho sim. E nunca mais esqueço.
O ouro em mim, a palavra
Irisada na minha boca
A urgência de me dizer em amor
Tatuada de memória e confidência.
Setembro em enorme silêncio
Distancia meu rosto. Te pergunto:
De Julho em mim ainda te lembras?
Disseram-me os amigos que Saturno
Se refaz este ano. E é tigre
E é verdugo. E que os amantes
Pensativos, glaciais
Ficarão surdos ao canto comovido.
E em sendo assim, amor,
De que me adianta a mim, te dizer mais?

VII

Sorrio quando penso
Em que lugar da sala
Guardarás o meu verso.
Distanciado
Dos teus livros políticos?
Na primeira gaveta
Mais próxima à janela?
Tu sorris quando lês
Ou te cansas de ver
Tamanha perdição
Amorável centelha
No meu rosto maduro?
E te pareço bela
Ou apenas te pareço
Mais poeta talvez
E menos séria?
O que pensa o homem
Do poeta? Que não há verdade
Na minha embriaguez
E que me preferes
Amiga mais pacífica
E menos aventura?
Que é de todo impossível
Guardar na tua sala
Vestígio passional
Da minha linguagem?
Eu te pareço louca?
Eu te pareço pura?
Eu te pareço moça?
Ou é mesmo verdade
Que nunca me soubeste?

VIII

De luas, desatino e aguaceiro
Todas as noites que não foram tuas.
Amigos e meninos de ternura
Intocado meu rosto-pensamento
Intocado meu corpo e tão mais triste
Sempre à procura do teu corpo exato.
Livra-me de ti. Que eu reconstrua
Meus pequenos amores. A ciência
De me deixar amar
Sem amargura. E que me dêem
Enorme incoerência
De desamar, amando. E te lembrando
- Fazedor de desgosto -
Que eu te esqueça.

IX

Esse poeta em mim sempre morrendo
Se tenta repetir salmodiado:
Como te conhecer, arquiteto do tempo
Como saber de mim, sem te saber?
Algidez do teu gesto, minha cegueira
E o casto incendiado momento
Se ao teu lado me vejo. As tardes
Fiandeiras, as tardes que eu amava,
Matéria de solidão, íntimas, claras
Sofrem a sonolência de umas águas
Como se um barco recusasse sempre
A liquidez. Minhas tardes dilatadas
Sobreexistindo apenas
Porque à noite retomo minha verdade:
teu contorno, teu rosto álgido sim
E por isso, quem sabe, tão amado.

X

Não é apenas um vago, modulado sentimento
O que me faz cantar enormemente
A memória de nós. É mais. É como um sopro
De fogo, é fraterno e leal, é ardoroso
É como se a despedida se fizesse o gozo
De saber
Que há no teu todo e no meu, um espaço
Oloroso, onde não vive o adeus.
Não é apenas vaidade de querer
Que aos cinqüenta
Tua alma e teu corpo se enterneçam
Da graça, da justeza do poema. É mais.
E por isso perdoa todo esse amor de mim
E me perdoa de ti a indiferença.

Hilda Hilst

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Lua Nova

Meu novo quarto
Virado para o nascente:
Meu quarto, de novo a cavaleiro da entrada da barra.

Depois de dez anos de pátio
Volto a tomar conhecimento da aurora.
Volto a banhar meus olhos no mônstruo incruento das madrugadas.

Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir:
Hei de aprender com ele
A partir de uma vez
- Sem medo,
Sem remorso,
Sem saudade.

Não pensem que estou aguardando a lua cheia
- Esse sol da demência
Vaga e noctâmbula.
O que eu mais quero,
O de que preciso
É de lua nova

Manoel Bandeira

domingo, 26 de junho de 2011

Nothing More

My friend I know you've suffered,
Although you are still young.
Why was it you who'd not take help
From anyone?

Oh it's true, it's very true, he said,
Some hard times I have known,
But I have always overcome them
On my own.

Oh the pearls that you hold in your hand
They are beautiful to see,
But you show them not to anyone,
Not even me.

For you are like the others, he said.
I never can be sure
That you wish just to see the pearls
And nothing more.

Why can you not see reason?
Our lives they are not long.
Why can you take no time
To tell us all we're wrong?

My tune it does not change, he said,
And neither does your song,
And words I use them rarely
When I'm all alone.

sábado, 25 de junho de 2011

25 de Junho

Nos 36 anos de independência de Moçambique, "roubo" as palavras de amor de Carlos Gil à sua (e sempre nossa) cidade, seja ela LM ou Maputo ...
Obrigada,  mais uma vez Carlos, por nos dares a maravilhosa poesia das (tuas) palavras.

Palavras cruzadas, emoções baralhadas

Olá, boa tarde. Sou o Carlos Gil e vou falar-vos de amor. Amor a uma cidade.

É comum explicar o amor a África por aqueles que lá viveram, afirmando que quem foi por ela beijado nunca esquece esse carinho.

Eu não fui beijado, foi mais profundo. Fui seduzido, e desse amar violento a uma cidade guarda a memória carícias de que não me evado nem emigro, é tão envolvente como o é uma paixão.

E que se vive no remanso do silêncio, até um dia em que a caneta se torna insuportavelmente lenta para contar. Em que se pára, o olhar preso na tristeza de tão pouco teclado para tanto que há para exprimir e compreender…

A minha cidade… Pérola do Índico, minha princesa … … Namorei-a, amei-a à exaustão, e emocionalmente ainda me sinto exaurido pela separação.

-/-

Divorciamo-nos há trinta e tal anos atrás. Um amor adolescente, um namoro em que as mãos dadas e as carícias trocadas fizeram-me suspirar por mais, acasalamento e de papel passado uma tarde rabiscado numa avenida que desce a colina e beija-a no ventre, Baixa da cidade, onde o Homem ergueu orgulhosos trinta e tal andares, para dizer à linha da paisagem, em grito de posse para a amante fiel e tolerante que tudo lhe dá e permite, que a sua ambição é grande, alta, excessivamente alta.

Antes do divórcio que desalinhou o nosso entrelaçado de afagos, eu e ela, musa cidade, namoramos sem fim nem jeito nas esquinas que me eram familiarmente sensuais, esquecidas as convenções nas partilhas de amor que trocámos ao seu sol, nesse sopro quente que clamava por quinhões de emoções que não lhe regateámos.

Era um amor doce, beijos sem fim trocados na suavidade da brisa que subia da baía e amenizava fins de tarde tropicais, outras vezes impetuosos no travo de sal das portas do mar onde nos sentávamos, juntos, próximos, amantes, jurando cumplicidades e sorrindo ao viver.

Sim, estávamos apaixonados e o nosso namoro era tão lindo como o amor que líamos nos nossos olhos quando nos encarávamos e sorríamos, enlevados na nossa paixão.

E, cá de longe, do tempo das cãs e das memórias, deixo soar o meu enamoramento eterno e escrevo-lhe cartas de amor e de desejo sem fim.

Mas igualmente me interrogo:

Perdoar-me-á algum dia?

As esquinas recordar-me-ão?

Faremos amor novamente, pois o que tínhamos era tão belo e intenso que não podia ser senão uma posse amorosa, contínua?

-/-

Hoje, os tais trinta e tal anos depois, mais coisa menos arrufo, ainda não gosto de falar no divórcio. Prefiro afagar em mim o enlevo das carícias da memória, as mãos dadas, os suspiros e as juras que trocávamos.

Compreendes-me, querida?

-/-

Como dizem os antigos e que muito conhecem destas coisas dos amores perdidos, não há verdades únicas nas separações, e é difícil arrolar razões e encontrar culpas exclusivas quando os dedos se separam, e deixa de se sentir o conforto da sua carícia. Quando o romance termina e desocupam-se os dias de calores como aqueles em que o nosso namoro foi farto, quando sobrevém às noites quentes o frio da solidão.

Não, nem palavras de traição são alçáveis, excessivas na injustiça de tanta letra dura para contar das lágrimas, o tempo que passa, a separação. Aconteceu, os deuses entenderam que o nosso romance precisava de mais provas, outro fogo que não o que nos aquecia na ânsia dos jovens amantes, e ele soçobrou; o nosso casamento, pueril, reprovou-se a tal prova e chumbou o enlace que se jurara eterno.

Conheci outras cidades e outros leitos, mais amores, e valha a verdade em contar que, neles, também fui feliz. Noutros colos e noutras ruas também amei e o meu sorriso surgiu natural ao acariciar seios-colinas, nas águas doutras praias e na sombra doutras árvores, na crosta urbana doutras terras, também ternas na sua secular carícia, sapiente, amei e fui feliz.

Mas há estes momentos de melancolia em que olho o passado e recordo o primeiro amor, e cai-me uma lágrima de saudade.

-/-

Hoje, vida feita e semi-gasta, com tanto balanço encerrado e de contas ajustadas, há em mim uma janelinha que não se cerra: abro o peito e espreito, e vejo-te a ti minha primeira amada. Vejo-te, minha cidade.

Se me olho ao espelho e tento ler as rugas, decifrar as cãs, desisto de nelas contar as desilusões, e deixo o olhar perder-se no brilho dos olhos quando a memória em ternura te contempla, as avenidas, o caniço, as acácias tão rubras como quente era o nosso enlevo.
Fazes-me falta
neste Outono da vida, meu amor. Sinto a falta do teu bafo quente, o brilho do teu sorriso, da magia que era acordar de mãos em ti enlaçadas e acreditando na eternidade da nossa paixão.

Desculpa-me pelo que errei, pelas minhas culpas na nossa separação. Desculpa-me. Porque ainda te amo. Pelo tempo passam outras que me amam e me tratam bem, mas confesso-te em letra de lei que, em mim, ainda não aconteceu amor como o nosso primeiro. Desculpa-me meu amor, Princesa, minha cidade.

-/-

Termino com um poema porque ninguém é mais universal que um poeta. Nuno Júdice:

Mas eu sabia tudo isso. Um poema faz-se para
dizer o que não se soube evitar, para substituir
confissões e decepções, para transformar em algo
de belo o que poderia conduzir à depressão,
ao fim de um mundo. Na verdade, há
ou não espaço para esta inquietação, para
a censura, a suspeita de que algo poderia ser
de outro modo, como se cada um de nós pudesse
ter o seu próprio caminho? Falo contigo: e
tu ouves-me, não me ouvindo, como eu te ouço
sem saber se é o que eu quero ouvir que vem
das tuas frases, ou se dizes o contrário do que
sentes para que eu sinta a verdade do que nenhum
de nós sente - a indiferença, a brancura da
emoção, um desejo de ruptura... Como se o amor
acabasse no meio do que não começou; ou
a distância pudesse apagar o que não tem fim.


Texto integral da comunicação de Carlos Gil ontem, 24-06-2011, no "IV Encontro de Escritores Moçambicanos na Diáspora" , realizado no auditório da junta de freguesia de S.Domingos de Rana, em Carcavelos.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Ser que nunca fui

Começo a chorar
do que não finjo
porque me enamorei
de caminhos
por onde não fui
e regressei
sem ter nunca partido
no arremesso da esperança

Nessas noites
em que de sombra
me disfarcei
e incitei os objectos
na procura de outra cor
encorajei-me
a um luar sem pausa
e vencendo o tempo que se fez tarde
disse : o meu corpo começa aqui
e apontei para nada
porque me havia convertido ao sonho
de ser igual
aos que não são nunca iguais

Faltou-me viver onde estava
mas ensinei-me
a não estar completamente onde estive
e a cidade dormindo em mim
não me viu entrar
na cidade que em mim despertava

Houve lágrimas que não matei
porque me fiz
de gestos que não prometi
e na noite abrindo-se
como toalha generosa
servi-me do meu desassossego
e assim me acrescentei
aos que sendo toda a gente
não foram nunca como toda a gente

Mia Couto

quinta-feira, 23 de junho de 2011

La Solitude



Je suis d'un autre pays que le votre, d'un autre quartier, d'une autre solitude.
Je m'invente aujourd'hui des chemins de traverse.
Je ne suis plus de chez vous, j'attends des mutants.
Biologiquement je m'arrange avec l'idée que je me fais de la biologie: je pisse, j'éjacule, je pleure.
Il est de toute première instance que nous façonnions nos idées comme s'il s'agissait d'objets manufacturés.
Je suis prêt à vous procurer les moules.
Mais, la solitude.
Les moules sont d'une texture nouvelle, je vous avertis.
Ils ont été coulés demain matin.
Si vous n'avez pas dès ce jour, le sentiment relatif de votre durée,
il est inutile de regarder devant vous car devant c'est derrière, la nuit c'est le jour.
Et la solitude.
Il est de toute première instance que les laveries automatiques, au coin des rues,
soient aussi imperturbables que les feux d'arret ou de voie libre.
Les flics du détersif vous indiqueront la case où il vous sera loisible de laver ce que vous croyez etre votre conscience et qui n'est qu'une dépendance de l'ordinateur neurophile qui vous sert de cerveau.
Et pourtant la solitude.
Le désespoir est une forme supérieure de la critique.
Pour le moment, nous l'appellerons "bonheur",
les mots que vous employez n'étant plus "les mots" mais une sorte de conduit à travers lequels, les analphabètes se font bonne conscience.
Mais la solitude.
Le Code civil nous en parlerons plus tard.
Pour le moment, je voudrais codifier l'incodifiable.
Je voudrais mesurer vos danaïdes démocraties.
Je voudrais m'insérer dans le vide absolu et devenir le non-dit,
le non-avenu, le non-vierge par manque de lucidité.
La lucidité se tient dans mon froc...

Léo Ferré

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Bem, Hoje Que Estou Só e Posso Ver

Bem, hoje que estou só e posso ver
Com o poder de ver do coração
Quanto não sou, quanto não posso ser,
Quanto se o for, serei em vão,
Hoje, vou confessar, quero sentir-me
Definitivamente ser ninguém,
E de mim mesmo, altivo, demitir-me
Por não ter procedido bem.
Falhei a tudo, mas sem galhardias,
Nada fui, nada ousei e nada fiz,
Nem colhi nas urtigas dos meus dias
A flor de parecer feliz.
Mas fica sempre, porque o pobre é rico
Em qualquer cousa, se procurar bem,
A grande indiferença com que fico.
Escrevo-o para o lembrar bem.

Fernando Pessoa

terça-feira, 21 de junho de 2011

Poema à Mulher de Signo Caranguejo (Câncer)


Você nunca avance
Em uma mulher de câncer.
Seu planeta é a lua
E a lua, é sabido
Só vive na sua.
É muito apegada
E quando pegada
Pega da pesada.
É a mulher que ama
Com muito saber
No tocante à cama
Não sei lhe dizer...

Vinicius de Moraes

Caranguejo (Câncer) - de 21 de Junho a 22 de Julho

Quero Ser Tambor

Tambor está velho de gritar
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.

Nem flor nascida no mato do desespero
Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.

Nem nada!

Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.

Eu
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

Oh velho Deus dos homens
eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem zagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.
Só tambor ecoando como a canção da força e da vida
Só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque!
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
só tambor!

José Craveirinha

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Poema sobre a recusa

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda.

Maria Tereza Horta (1937)

sábado, 18 de junho de 2011

Para ti

Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida

Mia Couto

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Noite por Ti Despida

Adulta é a noite onde cresce
o teu corpo azul. A claridade
que se dá em troca dos meus ombros
cansados. Reflexos coloridos. Amei
o amor. Amei-te meu amor sobre ervas
orvalhadas. Não eras tu porém
o fim dessa estrada
sem fim. Canto apenas (enquanto os álamos
amadurecem) a transparência, o caminho. A noite
por ti despida. Lume e perfume
do sol. Íntimo rumor do mundo.

Casimiro de Brito

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Eu e Ela

Cobertos de folhagem, na verdura,
O teu braço ao redor do meu pescoço,
O teu fato sem ter um só destroço,
O meu braço apertando-te a cintura;

Num mimoso jardim, ó pomba mansa,
Sobre um banco de mármore assentados,
Na sombra dos arbustos, que abraçados
Beijarão meigamente a tua trança.

Nós havemos de estar ambos unidos,
Sem gozos sensuais, sem más ideias,
Esquecendo p'ra sempre as nossas ceias,
E a loucura dos vinhos atrevidos.

Nós teremos então sobre os joelhos
Um livro que nos diga muitas cousas
Dos mistérios que estão p'ra além das lousas,
Onde havemos de entrar antes de velhos.

Outras vezes buscando distracção,
Leremos bons romances galhofeiros,
Gozaremos assim dias inteiros,
Formando unicamente um coração.

Beatos ou pagãos, vida à paxá,
Nós leremos, aceita este meu voto,
O Flos-Sanctorum místico e devoto
E o laxo Cavaleiro de Faublas...

Cesário Verde

terça-feira, 14 de junho de 2011

Amo-te muito, meu amor ...

Amo-te muito, meu amor, e tanto
que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda
depois de ter-te, meu amor. Não finda
com o próprio amor o amor do teu encanto.

Que encanto é o teu? Se continua enquanto
sofro a traição dos que, viscosos, prendem,
por uma paz da guerra a que se vendem,
a pura liberdade do meu canto,

um cântico da terra e do seu povo,
nesta invenção da humanidade inteira
que a cada instante há que inventar de novo,

tão quase é coisa ou sucessão que passa...
Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,
sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.

Jorge de Sena

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Fernando Pessoa




A 13 de Junho de 1888 nasceu em Lisboa Fernando António Nogueira Pessoa. Conhecido como Fernando Pessoa, é um dos maiores poetas da Língua Portuguesa e da Literatura Universal.






Pousa um momento,
Um só momento em mim,
Não só o olhar, também o pensamento.
Que a vida tenha fim
Nesse momento!

No olhar a alma também
Olhando-me, e eu a ver
Tudo quanto de ti teu olhar tem.
A ver até esquecer
Que tu és tu também.

Só tua alma sem tu
Só o teu pensamento
E eu onde, alma sem eu. Tudo o que sou
Ficou com o momento
E o momento parou

Fernando Pessoa

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Grito de Alma

Vem de séculos, alma, essa orgulhosa casta,
Repudiando a dor, tripudiando a lei.
Num gesto de altivez que em onda leva arrasta
Inteiras gerações de amaldiçoada grei.

Ir procurar, amor, nessa altivez madrasta,
Um gesto de carinho ou de brandura, eu sei?
Ao tigre dos juncais, duma crueza vasta,
Quem há que roube a presa? Aponta-me e eu irei!

Cruel destino o meu, que ao meu caminho trouxe
Na fulgurante luz do teu olhar tão doce
À mágoa minha eterna, a minha eterna dor.

Vai. Segue o teu destino. A onda quere-te e passa.
Vai com ela cantar o orgulho da tua raça
Que eu ficarei cantando o nosso eterno amor ...

Rui de Noronha

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Desencontro

Só quem procura sabe como há dias
de imensa paz deserta; pelas ruas
a luz perpassa dividida em duas:
a luz que pousa nas paredes frias,
outra que oscila desenhando estrias
nos corpos ascendentes como luas
suspensas, vagas, deslizantes, nuas,
alheias, recortadas e sombrias.

E nada coexiste. Nenhum gesto
a um gesto corresponde; olhar nenhum
perfura a placidez, como de incesto,

de procurar em vão; em vão desponta
a solidão sem fim, sem nome algum -
- que mesmo o que se encontra não se encontra.

Jorge de Sena

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Um Amor

Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão,
puxaste-me para os teus olhos
transparentes como o fundo do mar para os afogados. Depois, na rua,
ainda apanhámos o crepúsculo.
As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar
diferente inundava a cidade. Sentei-me
nos degraus do cais, em silêncio.
Lembro-me do som dos teus passos,
uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas,
e a tua figura luminosa atravessando a praça
até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto é,
o tempo suficiente para me aperceber de que, sem estares ali,
continuavas ao meu lado. E ainda hoje me acompanha
essa doente sensação que
me deixaste como amada
recordação.

Nuno Júdice

terça-feira, 7 de junho de 2011

O Amor, um Dever de Passagem

Fui envenenado pela dor obscura do Futuro.
Eu sabia já que algo se preparava contra o meu corpo.
Agora torço-me de agonia
nos versos deste poema.
Esta é a terra outrora fértil que os meus dedos dilaceram.
Os meus lábios são feitos desta terra,
são lama quente.
Vou partir pelo teu rosto para mais longe.
A minha fome é ter-te olhado
e estar cego. Agora eu sei que te abres para o fogo
do relâmpago.
Tenho a convicção dos temporais.
já não sei nem o que digo nem o que isso importa. Guia
dos meus cabelos rasos, da melancolia,
da vida efémera dos gestos.
Nesse dia fui melhor actor do que a minha sinceridade.

A cesura enerva-me no estômago
Cortei de manhã as pontas dos dedos mas sei já que
elas crescerão de novo a proteger as unhas.
Talvez a vida seja estranha,
talvez a vida seja simples,
talvez a vida seja outra vida.
A linha branca da Beleza é a minha atitude que se transforma.

A violência do sono sobe
sobre o meu conhecimento.

Fui algures um horizonte na secessão das pálpebras.

Nuno Júdice

domingo, 5 de junho de 2011

Confidência

Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça

Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno

Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci

Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos

No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome

Mia Couto

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Pedro lembrando Inês

Em quem pensar,agora,senão em ti? Tu, que
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
dizer:"Como é mais fácil deixar que as coisas
não mudem,sermos o que sempre fomos,mudarmos
apenas dentro de nós próprios?"Mas ensinaste-me
a sermos dois;e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide.Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo,ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios,mesmo
esse que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo,para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba.Como gosto,meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar:com
a surpresa dos teus cabelos,e o teu rosto de água
fresca que eu bebo,com esta sede que não passa.Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti,como
gostas de mim,até ao fundo do mundo que me deste.

Nuno Júdice

quinta-feira, 2 de junho de 2011

A Velhice Pede Desculpas

Tão velho estou como árvore no inverno,
vulcão sufocado, pássaro sonolento.
Tão velho estou, de pálpebras baixas,
acostumado apenas ao som das músicas,
à forma das letras.

Fere-me a luz das lâmpadas, o grito frenético
dos provisórios dias do mundo:
Mas há um sol eterno, eterno e brando
e uma voz que não me canso, muito longe, de ouvir.

Desculpai-me esta face, que se fez resignada:
já não é a minha, mas a do tempo,
com seus muitos episódios.

Desculpai-me não ser bem eu:
mas um fantasma de tudo.
Recebereis em mim muitos mil anos, é certo,
com suas sombras, porém, suas intermináveis sombras.

Desculpai-me viver ainda:
que os destroços, mesmo os da maior glória,
são na verdade só destroços, destroços.

Cecília Meireles

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Uma qualquer pessoa

Precisava de dar qualquer coisa a uma qualquer pessoa.
Uma qualquer pessoa que a recebesse
num jeito de tão sonâmbulo gosto
como se um grão de luz lhe percorresse
com um dedo tímido o oval do rosto.

Uma qualquer pessoa de quem me aproximasse
e em silêncio dissesse: para si.
E uma qualquer pessoa, como um luar, nascesse,
e sem sorrir, sorrisse,
e sem tremer, tremesse,
tudo num jeito de tão sonâmbulo gosto
como se um grão de luz percorresse
com um dedo tímido o oval do rosto.

Na minha mão estendida dar-lhe-ia
o gesto de a estender,
e uma qualquer pessoa entenderia
sem precisar de entender.

Se eu fosse o cego
que acena com a mão à beira do passeio,
esperaria em sossego,
sem receio.

Se eu fosse a pobre criatura
que estende a mão na rua à caridade,
aguardaria, sem amargura,
que por ali passasse a bondade.
Se eu fosse o operário
que não ganha o bastante para viver,
lutava pelo aumento do salário
e havia de vencer.

Mas eu não sou o cego,
nem o pobre,
num o operário a quem não chega a féria.

Eu sou doutra miséria.
A minha fome não é de pão, nem de água a minha sede.
A minha mão estendida e tímida, não pede.
Dá.
Esta é a maior miséria que, em todo o mundo, há.

E eu que precisava tanto, tanto, de dar qualquer coisa a uma
qualquer pessoa!

E se ela agora viesse?
Se ela aparecesse aqui, agora, de repente,
se brotasse do chão, do tecto, das paredes,
se aparecesse aqui mesmo, olhando-me de, frente
toda lantejoulada de esperanças
como fazem as fadas nos contos das crianças?

Ai, se ela agora viesse!
Se ela agora viesse, bebê-la-ia de um trago,
sorvê-la-ia num hausto,
sequiosamente,
tumultuosamente,
numa secura aflita,
numa avidez sedenta,
sofregamente,
como o ar se precipita
quando um espaço vazio se lhe apresenta.


António Gedeão

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