Palavras ditas ...

Se eu gosto de poesia?
Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor... Acho que a poesia está contida nisso tudo."
Carlos Drumond de Andrade

sábado, 31 de dezembro de 2011

Receita de ano novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Poemas de Dezembro

Procuro uma alegria
uma mala vazia
do final de ano
e eis que tenho na mão
- flor do cotidiano -
é vôo de um pássaro
é uma canção.

(Dezembro de 1968)

Uma vez mais se constrói
a aérea casa da esperança
nela reluzem alfaias
de sonho e de amor: aliança.

(Dezembro de 1973)

Fazer da areia, terra e água uma canção
Depois, moldar de vento a flauta
que há de espalhar esta canção
Por fim tecer de amor lábios e dedos
que a flauta animarão
E a flauta, sem nada mais que puro som
envolverá o sonho da canção
por todo o sempre, neste mundo

(Dezembro de 1981)

Quem me acode à cabeça e ao coração
neste fim de ano, entre alegria e dor?
Que sonho, que mistério, que oração?
Amor.

(Dezembro de 1985)

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 25 de dezembro de 2011

Natal

Acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Era gente a correr pela música acima.
Uma onda uma festa. Palavras a saltar.

Eram carpas ou mãos. Um soluço uma rima.
Guitarras guitarras. Ou talvez mar.
E acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.

Na tua boca. No teu rosto. No teu corpo acontecia.
No teu ritmo nos teus ritos.
No teu sono nos teus gestos. (Liturgia liturgia).
Nos teus gritos. Nos teus olhos quase aflitos.
E nos silêncios infinitos. Na tua noite e no teu dia.
No teu sol acontecia.

Era um sopro. Era um salmo. (Nostalgia nostalgia).
Todo o tempo num só tempo: andamento
de poesia. Era um susto. Ou sobressalto. E acontecia.
Na cidade lavada pela chuva. Em cada curva
acontecia. E em cada acaso. Como um pouco de água turva
na cidade agitada pelo vento.

Natal Natal (diziam). E acontecia.
Como se fosse na palavra a rosa brava
acontecia. E era Dezembro que floria.
Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.
E era na lava a rosa e a palavra.
Todo o tempo num só tempo: nascimento de poesia.

Manuel Alegre

sábado, 24 de dezembro de 2011

Natal em Moçambique

Branco e alto sou "Patrrão"
Pr’ós miúdos "Maningue Big"
Por vezes Bóer...Africânder
"Mais Velho: afenal és Português...!?"
Para as pitas já sou madala...(?)
Pr’ós colonos Vasco Da Gama...
Para os amigos sou poeta, um sonhador...
Cá p’ra mim, não sou ninguém!
Até "desconsegui" ser Pai Natal...
Faltam-me os Meninos Jesus
Tenho comigo o Espírito
Da minha Nossa Senhora
Que tudo,
Até a vida,
Me deu...

Em sorrisos vejo abraços
de quem não ousa tocar-me.
Então sou eu quem aperto
mão a mão
com coração.

E neste lado da Terra respiro paz e espaço,
Vendo o Natal assim:
No Presépio de capim, Menino e Família são Negros,
Missa do Galo é batuque
na praia se faz a fogueira;
não há sapato, há pègada e
as prendas são corais,
consoada é peixe pedra,
a batata é mandioca,
grêlos são a "matapa"
bebida é "Ntontonto" ou Sura, e
resiste o garrafão...
Corpo e espírito num só
Pouca riqueza, talvez!!!
Mas tanta, tanta ternura no gesto
Que Natal é:
"Era uma vez .... "

Luís Manuel Pestana - Poema de Natal (Moçambique-Natal 2009)

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Poema à Mulher de Signo CAPRICÓRNIO

A capricorniana é capricornial
Como a cabra de João Cabral.
Eu amo a mulher de capricórnio
Por que ela nunca lhe põe os próprios.
A caprina é tão ciumenta
Que até o ciúmes ela inventa.
Mulher fiel está aí: é cabra
Só que com muito abracadabra.
Suas flores: a papoula e o cânhamo
De onde vem o ópio e a maconha
Ela é uma curtição medonha
Por isso nos capricorniamos.

Vinicius de Moraes

Capricórnio - de 22 de Dezembro a 19 de Janeiro)

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Paixão Única

Quem me dera poder ver-te
Ai! Quem me dera dizer-te
Que pude amar-te e perder-te
Mas olvidar-te... isso não!
Que no ardor de outros amores,
Senti vivas sempre as dores
Duma remota paixão.

Com que dorida saudade
Penso nessa mocidade,
Nessa vaga ansiedade
Que soubeste compreender!
E tu só , só tu soubeste
Que, num mundo como este,
Qual florinha em penha agreste,
Pode a flor d'alma morrer.

Orvalhaste-a, quando ainda
Ao nascer, singela e linda,
Respirava a esp'rança infinda
Que consigo a infância tem.
Amparaste-a, quando o norte
Das paixões, soprando forte,
Lhe quis dar rápida morte
Como à cândida cecém!

E depois nuvem escura
Lá no céu desta ventura
Enlutou-me a aurora pura
Dos meus anos infantis.
Nesta vida houve um espaço
Onde nunca dei um passo
Em que não deixasse um traço
De paixões torpes e vis!

E não tenho outra memória
Que me inspire altiva glória
Mem outro nome na história
De meus delírios fatais.
Se percorro a longa escala
De paixões que a honra cala,
Quem dum nobre amor me fala
És só tu... e ninguém mais!

És só tu! De resto, apenas
Nestas variadas cenas
De ilusões e inglórias penas
Nada sinto o que perdi!...
Sinto bem esse desdouro
Que comprei com falso ouro,
Em desprezo dum tesouro
Que só pude achar em ti!

Camilo Castelo Branco

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Pela flor pelo vento pelo fogo
Pela estrela da noite tão límpida e serena
Pelo nácar do tempo pelo cipreste agudo
Pelo amor sem ironia - por tudo
Que atentamente esperamos
Reconheci tua presença incerta
Tua presença fantástica e liberta

Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 18 de dezembro de 2011

As Sem-Razões do Amor

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 17 de dezembro de 2011

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Fernando Pessoa

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Palavra que desnudo

Entre a asa e o voo
nos trocámos
como a doçura e o fruto
nos unimos
num mesmo corpo de cinza
nos consumimos
e por isso
quando te recordo
percorro a imperceptível
fronteira do meu corpo
e sangro
nos teus flancos doloridos
Tu és o encoberto lado
da palavra que desnudo.

Mia Couto

domingo, 11 de dezembro de 2011

O Beijo

Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa zul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.

Donde teria vindo! (Não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?

É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.

E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...

Alexandre O'Neill

sábado, 10 de dezembro de 2011

Respiro o teu corpo

Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.

Eugénio de Andrade

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Florbela Espanca

Florbela Espanca nasceu em Vila Viçosa a 8 de Dezembro de 1894.
Suicidou-se em 1930, no mesmo dia em que completava 36 anos, em Matosinhos.

Diz-me, Amor, como Te Sou Querida

Dize-me, amor, como te sou querida,
Conta-me a glória do teu sonho eleito,
Aninha-me a sorrir junto ao teu peito,
Arranca-me dos pântanos da vida.

Embriagada numa estranha lida,
Trago nas mãos o coração desfeito,
Mostra-me a luz, ensina-me o preceito
Que me salve e levante redimida!

Nesta negra cisterna em que me afundo,
Sem quimeras, sem crenças, sem turnura,
Agonia sem fé dum moribundo,

Grito o teu nome numa sede estranha,
Como se fosse, amor, toda a frescura
Das cristalinas águas da montanha!

Ser Poeta

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.


Como se fosse nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.

Hilda Hilst

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Segredo

Retirado daqui

Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça

nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa

Deixa que feche
o anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço

Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar

nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar

Maria Teresa Horta

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

É assim…

É assim que te quero, amor,
assim, amor, é que eu gosto de ti,
tal como te vestes
e como arranjas
os cabelos e como
a tua boca sorri,
ágil como a água
da fonte sobre as pedras puras,
é assim que te quero, amada,
Ao pão não peço que me ensine,
mas antes que não me falte
em cada dia que passa.
Da luz nada sei, nem donde
vem nem para onde vai,
apenas quero que a luz alumie,
e também não peço à noite explicações,
espero-a e envolve-me,
e assim tu pão e luz
e sombra és.
Chegastes à minha vida
com o que trazias,
feita
de luz e pão e sombra, eu te esperava,
e é assim que preciso de ti,
assim que te amo,
e os que amanhã quiserem ouvir
o que não lhes direi, que o leiam aqui
e retrocedam hoje porque é cedo
para tais argumentos.
Amanhã dar-lhes-emos apenas
uma folha da árvore do nosso amor, uma folha
que há-de cair sobre a terra
como se a tivessem produzido os nosso lábios,
como um beijo caído
das nossas alturas invencíveis
para mostrar o fogo e a ternura
de um amor verdadeiro.

Pablo Neruda

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