Palavras ditas ...

Se eu gosto de poesia?
Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor... Acho que a poesia está contida nisso tudo."
Carlos Drumond de Andrade

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Emprego e Desemprego do Poeta


Ruy Belo nasceu a 27 de Fevereiro de 1933 em São João da Ribeira, Rio Maior, e morreu prematuramente a 8 de Agosto de 1978, em Queluz.




Deixai que em suas mãos cresça o poema 
como o som do avião no céu sem nuvens 
ou no surdo verão as manhãs de domingo 
Não lhe digais que é mão-de-obra a mais 
que o tempo não está para a poesia 

Publicar versos em jornais que tiram milhares 
talvez até alguns milhões de exemplares 
haverá coisa que se lhe compare? 
Grandes mulheres como semiramis 
públia hortênsia de castro ou vitória colonna 
todas aquelas que mais íntimo morreram 
não fizeram tanto por se imortalizar 

Oh que agradável não é ver um poeta em exercício 
chegar mesmo a fazer versos a pedido 
versos que ao lê-los o mais arguto crítico em vão procuraria 
quem evitasse a guerra maiúsculas-minúsculas melhor 
Bem mais do que a harmonia entre os irmãos 
o poeta em exercício é como azeite precioso derramado 
na cabeça e na barba de aarão 

Chorai profissionais da caridade 
pelo pobre poeta aposentado 
que já nem sabe onde ir buscar os versos 
Abandonado pela poesia 
oh como são compridos para ele os dias 
nem mesmo sabe aonde pôr as mãos 

Ruy Belo

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013














Diz-me o teu nome - agora, que perdi
quase tudo, um nome pode ser o princípio
de alguma coisa. Escreve-o na minha mão

com os teus dedos - como as poeiras se
escrevem, irrequietas, nos caminhos e os
lobos mancham o lençol da neve com os
sinais da sua fome. Sopra-mo no ouvido,

como a levares as palavras de um livro para
dentro de outro - assim conquista o vento
o tímpano das grutas e entra o bafo do verão
na casa fria. E, antes de partires, pousa-o

nos meus lábios devagar: é um poema
açucarado que se derrete na boca e arde
como a primeira menta da infância.

Ninguém esquece um corpo que teve
nos braços um segundo - um nome sim.

Maria do Rosário Pedreira


Imagem retirada daqui

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Seu a seu dono

















A pele espera nas coisas a carícia do uso
como o cão anseia pelo dono.
O bordo do copo, os dentes do garfo.
Usurpar os lábios entreabertos
com a alma útil e desinteressada.
Um gole de. Faz-se tarde.
O vinho faz esquecer a pele do copo.
Porque tocar (pensa ela)
é uma confidência nocturna.
Lá fora as flores. As sebes.
O ressumar de amantes no cálice.
Toco-te com mãos alheias:
eis toda a confidência de que sou capaz.
Um vestido de seda a abrir na minha perna:
um osso para te fazer correr:
um ganido de amor à porta do prédio.

Rosa Alice Branco

Imagem retirada daqui

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Diz-me se incomodo




Diz-me se incomodo,
disse ao entrar,
porque me vou imediatamente.

Não apenas incomodas,
respondi,
como pões de pés para o ar toda a minha existência.
Bem-vindo.

Eeva Karin Kilpi (Eeva Karin Salo)


Poema copiado do Nothingandall
Imagem daqui

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O Pai



Terra de semente inculta e bravia,
terra onde não há esteiros ou caminhos,
sob o sol minha vida se alonga e estremece.

Pai, nada podem teus olhos doces,
como nada puderam as estrelas
que me abrasam os olhos e as faces.

Escureceu-me a vista o mal de amor
e na doce fonte do meu sonho
outra fonte tremida se reflecte.

Depois... Pergunta a Deus porque me deram
o que me deram e porque depois
conheci a solidão do céu e da terra.

Olha, minha juventude foi um puro
botão que ficou por rebentar e perde
a sua doçura de seiva e de sangue.

O sol que cai e cai eternamente
cansou-se de a beijar... E o outono.
Pai, nada podem teus olhos doces.

Escutarei de noite as tuas palavras:
... menino, meu menino...

E na noite imensa
com as feridas de ambos seguirei.

Pablo Neruda

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Aos Namorados do Brasil


Dai-me, Senhor, assistência técnica
para eu falar aos namorados do Brasil.


Será que namorado algum escuta alguém?
Adianta falar a namorados?
E será que tenho coisas a dizer-lhes
que eles não saibam, eles que transformam
a sabedoria universal em divino esquecimento?
Adianta-lhes, Senhor, saber alguma coisa,
quando perdem os olhos
para toda paisagem ,
perdem os ouvidos
para toda melodia
e só vêem, só escutam
melodia e paisagem de sua própria fabricação?

Cegos, surdos, mudos - felizes! - são os namorados
enquanto namorados. Antes, depois
são gente como a gente, no pedestre dia-a-dia.
Mas quem foi namorado sabe que outra vez
voltará à sublime invalidez
que é signo de perfeição interior.
Namorado é o ser fora do tempo,
fora de obrigação e CPF,
ISS, IFP, PASEP,INPS.

Os códigos, desarmados, retrocedem
de sua porta, as multas envergonham-se
de alvejá-lo, as guerras, os tratados
internacionais encolhem o rabo
diante dele, em volta dele. O tempo,
afiando sem pausa a sua foice,
espera que o namorado desnamore
para sempre.
Mas nascem todo dia namorados
novos, renovados, inovantes,
e ninguém ganha ou perde essa batalha.

Pois namorar é destino dos humanos,
destino que regula
nossa dor, nossa doação, nosso inferno gozoso.
E quem vive, atenção:
cumpra sua obrigação de namorar,
sob pena de viver apenas na aparência.
De ser o seu cadáver itinerante.
De não ser. De estar, e nem estar.

O problema, Senhor, é como aprender, como exercer
a arte de namorar, que audiovisual nenhum ensina,
e vai além de toda universidade.
Quem aprendeu não ensina. Quem ensina não sabe.
E o namorado só aprende, sem sentir que aprendeu,
por obra e graça de sua namorada.

A mulher antes e depois da Bíblia
é pois enciclopédia natural
ciência infusa, inconciente, infensa a testes,
fulgurante no simples manifestar-se, chegado o momento.
Há que aprender com as mulheres
as finezas finíssimas do namoro.
O homem nasce ignorante, vive ignorante, às vezes morre
três vezes ignorante de seu coração
e da maneira de usá-lo.

Só a mulher (como explicar?)
entende certas coisas
que não são para entender. São para aspirar
como essência, ou nem assim. Elas aspiram
o segredo do mundo.

Há homens que se cansam depressa de namorar,
outros que são infiéis à namorada.
Pobre de quem não aprendeu direito,
ai de quem nunca estará maduro para aprender,
triste de quem não merecia, não merece namorar.

Pois namorar não é só juntar duas atrações
no velho estilo ou no moderno estilo,
com arrepios, murmúrios, silêncios,
caminhadas, jantares, gravações,
fins-de-semana, o carro à toda ou a 80,
lancha, piscina, dia-dos-namorados,
foto colorida, filme adoidado,,
rápido motel onde os espelhos
não guardam beijo e alma de ninguém.

Namorar é o sentido absoluto
que se esconde no gesto muito simples,
não intencional, nunca previsto,
e dá ao gesto a cor do amanhecer,
para ficar durando, perdurando,
som de cristal na concha
ou no infinito.

Namorar é além do beijo e da sintaxe,
não depende de estado ou condição.
Ser duplicado, ser complexo,
que em si mesmo se mira e se desdobra,
o namorado, a namorada
não são aquelas mesmas criaturas
que cruzamos na rua.
São outras, são estrelas remotíssimas,
fora de qualquer sistema ou situação.
A limitação terrestre, que os persegue,
tenta cobrar (inveja)
o terrível imposto de passagem:
"Depressa! Corre! Vai acabar! Vai fenecer!
Vai corromper-se tudo em flor esmigalhada
na sola dos sapatos..."
Ou senão:
"Desiste! Foge! Esquece!"
E os fracos esquecem. Os tímidos desistem.
Fogem os covardes.
Que importa? A cada hora nascem
outros namorados para a novidade
da antiga experiência.
E inauguram cada manhã
(namoramor)
o velho, velho mundo renovado.

Carlos Drummond de Andrade


do Poeta

Necrológio dos desiludidos do amor
A Flor e a Náusea
Receita de Ano Novo
Poemas de Dezembro
As Sem-Razões do Amor

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Marcha de Quarta-Feira de Cinzas






Acabou nosso carnaval
Ninguém ouve cantar canções
Ninguém passa mais brincando feliz
E nos corações
Saudades e cinzas foi o que restou




Pelas ruas o que se vê
É uma gente que nem se vê
Que nem se sorri
Se beija e se abraça
E sai caminhando
Dançando e cantando cantigas de amor

E no entanto é preciso cantar
Mais que nunca é preciso cantar
É preciso cantar e alegrar a cidade

A tristeza que a gente tem
Qualquer dia vai se acabar
Todos vão sorrir
Voltou a esperança
É o povo que dança
Contente da vida, feliz a cantar
Porque são tantas coisas azuis
E há tão grandes promessas de luz
Tanto amor para amar de que a gente nem sabe

Quem me dera viver pra ver
E brincar outros carnavais
Com a beleza dos velhos carnavais
Que marchas tão lindas
E o povo cantando seu canto de paz
Seu canto de paz

Vinícius de Moraes e Carlos Lyra

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Gumes de névoa

Lágrimas?
Ou apenas dois intoleráveis
ardentes gumes de névoa
acutilando-me cara abaixo?

José Craveirinha

Invictus



Da cegueira colectiva à aprendizagem da insensibilidade

"..............................................................................................................................................
... Um dos maiores professores do nosso tempo é um homem que nunca deu aulas. É um homem que ensinou a sermos mais humanos. Mais do que isso, é um homem que ensinou a ter esperança num mundo tão desesperançado. Esse professor de toda a humanidade, de todas as raças e credos, é um africano. Chama-se Nelson Mandela. A sua vida foi uma interminável lição. Mandela é hoje uma bandeira mundial não apenas porque foi um político que dignificou a política, mas porque nos dignificou a todos nós, seres humanos. 

Deixem-me falar de Mandela. Este homem, que agora está doente e cansado, viveu encarcerado durante vinte e sete anos. Vinte e sete anos são mais do que o tempo de vida da maior parte dos presentes nesta sala. Vinte e sete anos de prisão é tempo suficiente para criar raiva, ódio e insuperáveis ressentimentos. Contudo, este homem converteu esse potencial negativo em força construtiva e reconciliadora. Um dos motivos de inspiração de Mandela foi encontrado num poema que se chama "Invictus". Vou ler esse poema.



Do ventre da noite que tudo cobre
Negra como o fundo da cova escura
Agradeço aos deuses de todos os céus
Por quanto a minha invencível alma perdura

Ante as garras do cruel acaso
Nem eu tremi, nem o medo me turvou
Sob o peso da ameaça e da desumana violência
Eu sangrei mas a minha alma nunca se curvou

Não importa se a passagem é estreita
Não importa quantos castigos devo penar
Eu sou o dono do meu destino
Eu sou o capitão da minha alma.


Estes versos, meus amigos, foram uma espécie de suporte moral que deram força a Nelson Mandela. Vezes infinitas o prisioneiro 46664 da Ilha de Robin regressou a estes versos para não sucumbir. Como escritor e poeta, dá-me grande alegria saber deste poder da poesia. Neste caso, há qualquer coisa que deve ser acrescentada.

Na verdade, este poema foi escrito em 1875. O seu autor não foi um poeta sul-africano, não foi sequer um poeta africano. Quem escreveu estes versos foi um britânico chamado William Ernest Henley. Estes versos viajaram para além de séculos e continentes e iluminaram a esperança de um homem que, em vez de se vitimizar e procurar a vingança, nos deu uma eterna lição da crença nos outros. 

Eu venho falar para a Escola de Comunicação e Artes. Por isso me demorei nestes episódios. Porque acredito que a comunicação e a arte são ferramentas de mudança tão importantes como a política. Mandela fez da política um instrumento de comunicação da verdade. Ele fez da política uma obra na arte da reconciliação, numa nação dividida pelo preconceito. Talvez a cultura seja o mais poderoso e duradouro instrumento de intervenção social. No nosso continente isso é bem claro. Vejamos um exemplo:

Desde há 50 anos, quando começaram a acontecer as independências, o nosso continente conheceu mais de 210 presidentes. O desafio que vos faço é o seguinte: digam o nome de 10 (apenas 10) destes dirigentes que se tenham notabilizado como figuras humanas de referência. Terão dificuldade. Será muito mais fácil enumerarmos artistas e intelectuais dignos de serem lembrados. E é aqui que a figura de Mandela é tão importante para nós, africanos. Podemos não nos lembrar de muitos políticos africanos que nos dignifiquem. Mas o nome de Mandela basta para compensar toda essa ausência e devolver o orgulho de sermos quem somos
..................................................................................................................................................................
O poeta William Henley não poderia imaginar que versos seus poderiam sustentar, cem anos mais tarde, a vontade de lutar de um africano que iria mudar o destino de milhões de pessoas.

Fazemos o que fazemos não porque sejam grandiosas iniciativas mas porque necessitamos mudar as coisas e melhorar o mundo. Fazemos o que fazemos porque, como diz o poema, nós queremos ser donos do nosso destino e capitães da nossa alma colectiva."

Mia Couto -  Aula Magna da Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane

Texto completo da alocução aqui


Estátua em bronze, perpetuando a saída de Nelson Mandela da prisão Victor Vester
(actualmente Drakenstein) no dia 11 de Fevereiro de 1990
Out of the night that covers me,
Black as the Pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.

In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds and shall find me unafraid.

It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul.

William Ernest Henley (23/08/1849 – 11/07/1903)


"Ninguém nasce odiando outra pessoa por causa da cor de sua pele, da sua origem ou da sua religião. Para odiar, é preciso aprender. E, se podem aprender a odiar, as pessoas também podem aprender a amar."

Nelson Mandela

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Não há dia, não há manhã


Imagem copiada daqui


Aos meus irmãos Rui, Orlando, Tujinha, Nhonhô e Benny, ao meu tio Mano Lópi e aos meus primo Pira e Fernão, todos moradores da diáspora nesses longínquos fins dos anos setenta e inícios dos anos oitenta do século XX.
À memória de meus amigos e parentes falecidos na Terra-Longe.
A Afonso, Rui, Txikosa e Ká, meus velhos amigos das andanças de Leipzig e de outros lugares então situados aquém do Muro.



Não há dia
Terra
não há noite
que o teu suor em construção
não me venha acariciar
o corpo da saudade em sangue
do seu clítoris fosforescendo
em pardas fulgurações da ilha
em figuras de milho e cabra

Não há dia
Terra
não há tarde
que os meus/teus braços em baía
não se curvem
em amplo amplexo
ao teu/meu abraço de liberdade
assim nascida
assim crescida
qual certeza lavrando-se
na ambiguidade dos Outubros
de novas chuvas

Onde o camponês
com viagens de emigração
na boca da enxada?

Onde o pescador
com vagens de desânimo
desperto!
nos areais da Ribeira da Barca
nas ruas viandantes da Boavista?

Venham
vocês das ilhas vulcânicas

Venham
com os lábios das notícias

Venham
com os que suam
nos andaimes de Lisboa Luanda e Berlim

Venham
com os que labutam
nos portos de Roterdão Dakar e Nanquim

Venham
com os que deambulam
pelas ruas de Nova York S. Paulo e Pequim

Venham
com as calmarias e as catástrofes
do mar alto

Venham
com as muitas tragédias reportadas
do além-mar

Venham
com os sentidos orvalhos e os temidos
temporais dos tempos das as- águas

Venham
Com e as mantenhas das tocatinas
e os cânticos à cachupa

Venham
com os salmos ao violão
e as serenatas à lua companheira

Venham
todos

E digam-me da Praia-Maria
das suas esquinas dos seus pedintes
dos seus parques prédios e padarias novos
e do seu ilhéu
pobre e andrajoso
e do seu ilhéu
de pedras e ervas selvagens
e do seu ilhéu de Santa Maria
debruçado
nobre e majestoso
sobre a curva extasiada
das ondas
das ancas do mar
das ancas do martírio

Venham
serenas sussurrando
como rumorejantes folhas de lemba-lemba

Venham
intermináveis e enigmáticas
como as luxuriantes indumentárias dos ditos das máximas das sentenças
e das outras palavras preciosas do profeta Nho Nacho
e das outras metafóricas asserções das cantadeiras da ilha de Santiago

Venham
espinhosas e endémicas
como a chã sabedoria dos Rabelados

Venham
e alimentem-me
com a viçosa paz
que germina
das chuvas descobertas
no útero da terra

Venham
e saciem-me
com a suculenta paz
que se ilumina
com os sóis inventados
nos nervos das pedras

Venham
e prendam-me
ao poilão da Boa Entrada
ao musgo que à sua sombra
se dissemina
assim ventre
assim verde ventre

Venham
ó ilhéus todos caboverdianos
e contem-me
dos choros dos cantos dos gritos das lamúrias das mágoas dos gemidos
dos soluços das guisas dos lamentos dos desalentos dos desabamentos
de terra dos sismos das enxurradas das irrupções vulcânicas das explosões demográficas do fladu fla dos rumores dos boatos
dos boatos das falácias e das controvérsias
das contendas das estações
nos tempos das ilhas

Venham
ó gentes todas arquipelágicas
e saturem
os meus olhos ausentes
com as novas do que se fez
do que se perfez
sob o eclodir
das vozes basálticas
dos tribunais de rua
querelando
contra a especulação do sal e da terra

e afaguem
e façam flamejar
os meus olhos ausentes
com as novas do que se desfez
com as novas do que se refez
sob os olhares circunspectos
das togas de caqui e cana de açúcar
alegando
contra o açambarcamento do sol
sob os olhares vigilantes
dos ansiosos pastores
da nossa antiquíssima infância de sonhos

Venham
ó poentes e madrugadas
ó crepúsculos e alvoradas
ó nevoeiros e arco-íris

Venham
ó planaltos e ribeiras
ó achadas e fajãs
ó colinas e cutelos
ó cumeadas e ribanceiras

Venham
ó vegetações de secura
ó florações dos tempos todos
sempre escassos de fartura

Venham
ó vales dolorosos da Cidade Velha
ó praças ruas e largos atónitos das Cidades Novas

E tragam
as gentes da Brava
ternas na fala e na esconjuração
dos sortilégios da lonjura
amoráveis na mansa conjura da morna
da cálida espessura dos seus timbres e dos seus gestos
sob a doce névoa da morabeza
com a destemida sageza de Nho Eugénio

E tragam
o Vulcão do Fogo
e a altivez dançante das bandeiras e das coladeiras
tisnadas de lavas e desenvoltura
enamoradas do engalanado relinchar dos cavalos
seduzidas pelo frenético ecoar dos paus de pilão
ritmando sob a longa e insolente elocução
dos rabolos e das curcutições

E tragam
o Topo da Coroa
expectante face à íngreme ossatura
da revolta ansiosa defronte da afónica musculatura
da cacofonia da emudecida oratura da resignação
na boca ainda amordaçada
de ambas-as-ribeiras
todavia festejando o livre o ecoar do colá são joão
efervescendo com a rítmica ebulição dos ventres
das mulheres em êxtase velejando com os veleiros
e os homens das ribeiras em romaria
pelos desfiladeiros e as povoações da ilha
sazonalmente em festa

E tragam
o Pico de António
e o seu rochoso rumor
eclodindo sobre Assomada
e o verde erodido de Santiago
dos seus terreiros capelas e catedrais
dos seus feijoeiros e seus odores
e suas dores vegetais serpenteando o ritmo e a dolência
saracoteando a copiosa alegria do batuco e do funaná
solfejando a memória de pautas e de sinos
ainda afinando os acordes e as melodias das serenatas
em todas as bocas e céus de boca

E tragam
o corpo do Mindelo
explodindo no carnaval e na quotidiana ironia
a alegria da dança o êxtase das vestes
e a irreverência das máscaras
nas faces cálidas nas gruas expectantes
nos mitos devolutos do Porto Grande estirado
na baía emoldurando-se vasta e solitária
sob o majestático perfil do Monte Cara

E tragam
a altaneira memória da Ribeira Brava
e das suas águas revolutas alagando as recentes ruínas
das suas missas cantadas
e das suas lembranças reedificando as pedras solenes
e as tábuas altissonantes do seu Seminário-Liceu

E tragam
os dias e as noites da Boavista do Sal e do Maio
os seus caraculos e pedras de sal
os seus milhos famintos
os seus violões soluçantes

Tragam tudo
e a monotonia explosivamente bela
do transe na dança do torno

Tragam tudo
e a sensualidade exaustivamente bailarina
nos lábios sedutores no morno olhar no velado saracoteio
no enlanguescido e desafiante modo de andar das mulheres
mulatas negras e brancas das nossas ilhas das crioulas da nossa imaginação das musas da nossa inspiração das divas dos nativos
e dos forasteiros devaneios

Tragam as luzes desse cenário
desses risos e ritmos de colexa e coladera
dessas ancas de morna e tabanca
e encham-me os olhos
com sua luz e sede
com sua luz e sede de caminhar
e inundem -me o corpo
com sua sombra e sonda
com sua sonda de esperança

Tragam tudo
e o rosto de Amílcar
e a sua década de guerrilha e metralha
e a sua inteira vida escrutando a chuva
e o seu reverdecido rumor
ecoando entre as ruínas da Cidade Velha
e as congeminações das mamães- velhas

Tragam tudo
e o perfil intacto e limpo de Abel Djassi
e as suas mãos olímpicas
e as suas palavras proféticas
e os seus tornozelos nómadas
e os seus pés errantes
por todas as pasárgadas e anti-pasárgadas
pelos lugares todos onde medra
o sonho de progresso e de liberdade
e se extasiam os seus setembrinos alicerces

Tragam tudo
e a face impoluta de Cabral
e os seus cilícios igualitários
e os seus indícios fraternitários
laborando incansáveis
em lavras nossas e em terras longínquas infatigáveis
a incorrompida esperança a vindoura bonança
para o povo das ilhas e para os povos africanos irmãos

Tragam tudo
e o corpo castanho da terra
e a sua alma salpicada de verde
para estes dias nossos
de espanto e desvario
nas gares da Europa
nos seus portos e aeroportos

Tragam tudo
e as folhos as lágrimas
das nossas mães
até ao nosso regresso
com rosas e agriões
com música e mostarda
com as mãos prenhes de flores
com os pés novamente rachados
em oferenda nos relembrados berços
nas jubilosas festas de guarda-cabeça
ao sétimo dia dos nossos filhos sobrinhos e afilhados
em oração nos túmulos dos nossos pais avôs e bisavôs
em sagração dos novos portais
das casas dos nossos outros parentes próximos
em demanda e em oferecimento de pêsames
aos rostos enlutados dos nossos compadres vizinhos e amigos
em derradeira inumação do umbigo
desde há muito enterrado à sombra
da mangueira da nossa infância…

Nzé de Sant'y Águ

Este poema foi copiado do site da Associação Caboverdeana onde constava a seguinte nota do autor

Versão segunda ou primeira versão revista abreviada
Constitui o presente poema uma versão revista, aumentada e adaptada à situação do Cabo Verde dos fins dos anos setenta e dos inícios dos anos oitenta do século XX do poema homónimo publicado no caderno “A Madrugada da Neblina ou Neve Encharcada de Sol” do primeiro volume de À Sombra do Sol, a minha primeira obra editada em livro em 1990.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Nesta curva ...

Imagem retirada DAQUI



Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

Alexandre O'Neill,


Em destaque

orgasmo

fui ver o mar fez-se a mim fiz-me a ele as ondas desta vez tombaram de pé e espumaram de gozo  Bénèdicte Houart (no dia internacional do org...