Palavras ditas ...

Se eu gosto de poesia?
Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor... Acho que a poesia está contida nisso tudo."
Carlos Drumond de Andrade

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Encontro




Ele não apareceu.
Talvez tenha adoecido ou ficado debaixo de
um eléctrico. Talvez outra pessoa se pusesse na conversa com ele.
Talvez se tenha esquecido do relógio,
ou o relógio se tenha esquecido de lhe dar o tempo certo.
Talvez o carro não pegasse,
ou tenha ficado avariado a meio do caminho.
Talvez alguém lhe telefonasse quando ia a sair de casa,
dizendo-lhe que tinha de ir a um funeral
ou que a mãe dele tinha morrido.
Talvez tenha encontrado um antigo conhecido.
Talvez tenha tido uma discussão no emprego,
tenha sido despedido e esteja a esconder
a cabeça debaixo de uma almofada.
Talvez a ponte estivesse fechada e
a seguinte também.
Talvez o semáforo permanecesse vermelho.
Talvez o multibanco tenha engolido o cartão
ou a meio do caminho tenha reparado que se esquecera
do porta-moedas.
Talvez tenha perdido os óculos,
não conseguisse deixar de ler,
houvesse um programa que ele queria acabar de ver,
não conseguisse dar a volta à fechadura da porta,
não encontrasse as chaves em sítio nenhum e
o cão dele de repente começasse a vomitar.
Talvez não houvesse um telefone por perto,
não encontrasse o restaurante
ou esteja à espera noutro sítio, por engano.
Talvez – a última possibilidade,
incompreensível e inesperada –
ele tenha deixado de me amar.

Hagar Peeters
tradução de Maria Leonor Raven-Gomes


Poema copiado do blog Queridas Bibliotecas
Imagem daqui

quarta-feira, 24 de abril de 2013

À memória de Miguel Portas, 25 de Abril de 2012


No 1º aniversário da morte de Miguel Portas, fica o poema de Ana Luísa Amaral, sobre o 25 de Abril à memória de Miguel Portas. 



Tão novo de morrer,
quase morrido

Tem vindo a ser matado
por sorrisos e cega obediência,
por sustos assustados,
ou simplesmente por não ser presente
e ter sido esquecido
na cave desta casa

Nela nasceu erguido
entre o mais desatado e o mais belo de ser:
tanques e cravos, e casos curiosos raso a mitos,
e sérios casos de paixão a sério,
e também carne e vida,
o que de mais importa neste mundo

Repousar é de morto, e ele terá morrido:
sem exéquias sequer,
só de mentira,
está o seu corpo muito lá em baixo,
como se fosse um peso que já não:

Nem mesmo incomodar
os números que voam, desatados,
os bárbaros que uivando sobrevoam
o telhado da casa
e nele pousam, cruéis e confortáveis,
repousam dos seus rumos de conquista

Tão novo de morrer,
morrido quase

Quem as exéquias suas?
Não há mural que o ressuscite aqui?
Ou chamamento novo que o congregue
de novo e em colisão
nestas janelas?

Dos que ao seu lado viveram lado a lado,
desses o susto bom de ele nascer,
e a desobediência ao erro e ao dobrado

Dos que depois nasceram:
a memória,
talvez da sua mão, ou mãe: memória,
o que de mais importa neste mundo

Que esses possam dizer que não,
que ainda vive,
que é novo de morrer e ainda vive,
e que o seu funeral: coisa sem rumo

Mesmo que chova hoje, como chove,
e as nuvens se perfilem junto aos uivos,
mesmo assim pressenti-lo

Teimar que é impossível
morrer assim tão novo

Saber
que isto não pode ser assim

Ana Luísa Amaral

terça-feira, 23 de abril de 2013

Poema Enjoadinho

Parabéns meu amor

Filhos… Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-lo?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como os queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete…
Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Engole água
Fica salgada
Se iodifica
Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filhos? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los…
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem xampu
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!

Vinícius de Moraes

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Noite de Sonhos Voada




Noite de sonhos voada
cingida por músculos de aço,
profunda distância rouca
da palavra estrangulada
pela boca amordaçada
noutra boca,
ondas do ondear revolto
das ondas do corpo dela
tão dominado e tão solto
tão vencedor, tão vencido
e tão rebelde ao breve espaço
consentido
nesta angústia renovada
de encerrar
fechar
esmagar
o reluzir de uma estrela
num abraço
e a ternura deslumbrada
a doce, funda alegria
noite de sonhos voada
que pelos seus olhos sorria
ao romper de madrugada:
— Ó meu amor, já é dia!...

Manuel da Fonseca

                                                                                                         imagem retirada daqui 


quinta-feira, 11 de abril de 2013

A Demora
















O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.

Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.

Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.

Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.

Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz
se vai despindo em ti.

O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.

Mia Couto

Imagem copiada aqui

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Exílio




Eu vivo na minha terra
Mas estou exilado.
Quem vive nela não sou eu
Mas outro que em mim vive.
A minha terra está por vir
E o meu outro ser vive, vive...
...vive à espera desse porvir

António Cardoso



Imagem copiada aqui

terça-feira, 9 de abril de 2013

Castanheiros, Irmãos.




Ó castanheiros de folhas de ouro,
Carregados de ouriços que são ninhos
Onde as castanhas dormem como noivos!

Troncos abertos,




Casas abertas,
Ao vosso abrigo
Dormem os pobres,
Pegam no sono,
Passam as noites
Quando cai neve!

Peitos vazios,
Escancarados,
Sem nada dentro,
Nem coração!
Dais lume, calor
E dais sustento para a mesa,
E dais o mais que eu não sei!...

Ó castanheiros de folhas de ouro,
Apenas sou vosso irmão
Em que a terra vos criou
E criou-me a mim também;
Em que vós ergueis os braços
Suplicantes para os céus
E eu também levanto os meus...

Ah! Castanheiros, mas eu
Grito e vós ficais calados!
Seremos, por isto só,
Irmãos? Seremos? Não sei:
Vós tendes roupas de rei,
Eu tenho roupas de Job;
Vós só gritais quando o vento
Vos abre a boca e fustiga:
Então ergueis um clamor...
— Não calo nunca no peito
A dor do meu sofrimento
E nunca chego a dize-la,
Nem há ninguém que me diga.

Ó castanheiros de folha de ouro,
Não,
Eu não sou vosso irmão!...


Branquinho da Fonseca

Imagem copiada daqui

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Amo-te por sobrancelha























Amo-te por sobrancelhas, por cabelos, debato-te em corredores
branquíssimos onde se jogam as fontes da luz,
Discuto-te a cada nome, arranco-te com delicadezas de cicatriz,
vou pondo no teu cabelo cinzas de relâmpago
e fitas que dormiam na chuva.

Não quero que tenhas uma forma, que sejas
precisamente o que vem por trás da tua mão,
porque a água, considera a água, e os leões
quando se dissolvem no açúcar da fábula,
e os gestos, essa arquitectura do nada,
acendendo as lâmpadas a meio do encontro.

Tudo amanhã é a ardósia onde te invento e desenho.
pronto a apagar-te, assim não és, nem tampouco
com esse cabelo liso, esse sorriso.

Procuro a tua súmula, o bordo da taça onde o vinho
é também a lua e o espelho,
procuro essa linha que faz tremer um homem
numa galeria de museu.

Além disso quero-te, e faz tempo e frio.

Julio Cortázar

Imagem copiada daqui

terça-feira, 2 de abril de 2013

Origem dos sonhos esquecidos



Entre a bicicleta e a laranja
vai a distância de uma camisa branca

Entre o pássaro e a bandeira
vai a distância dum relógio solar

Entre a janela e o canto do lobo
vai a distância dum lago desesperado

Entre mim e a bola de bilhar
vai a distância dum sexo fulgurante

Qualquer pedaço de floresta ou tempestade
pode ser a distância
entre os teus braços fechados em si mesmos
e a noite encontrada para além do grito das panteras

qualquer grito de pantera
pode ser a distância
entre os teus passos
e o caminho em que eles se desfazem lentamente

Qualquer caminho
pode ser a distância
entre tu e eu

Qualquer distância
entre tu e eu
é a única e magnífica existência
do nosso amor que se devora sorrindo

Mário Henrique Leiria

Imagem daqui

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