Palavras ditas ...

Se eu gosto de poesia?
Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor... Acho que a poesia está contida nisso tudo."
Carlos Drumond de Andrade

domingo, 25 de agosto de 2013

Água-Memória




Que súbita alegria me tortura
alegria tão bela e estranha
tão inquieta
tão densa de pressentimentos?
Que vento nos meus nervos
que temporal lá fora
que alegria tão pura, quase medo ao silêncio?





Pára a chuva nas árvores 
pára a chuva nos gestos, 
interiores contornos 
divisíveis distâncias 
ultrapassáveis gritos 
que alegria no inverno, 
que montanha esperada ou inesperado canto?


Maria Alberta Rovisco Garcia Menéres de Melo e Castro nasceu em Vila Nova de Gaia, Mafamude, a 25 de Agosto de 1930.

Escreveu o primeiro livro, Intervalo, em 1952. Água-Memória, ganhou o prémio do Concurso Internacional de Poesia Giacomo Leopardi em 1960.

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quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Pela voz contrafeita da poesia

Toulouse Lautrec


Mas de repente voltas
numa dor de esperança sem razão de ser

Da sua indiferença
agressivamente as coisas saem
Sentimo-nos cercados
ameaçados pelas coisas
e agora lamentamos o tempo perdido
a dispô-las a nosso favor

Porque é tempo de romper com tudo isto
é tempo de unir no mesmo gesto
o real e o sonho
é tempo de libertar as imagens as palavra!
das minas do sonho a que descemos
mineiros sonâmbulos da imaginação

É tempo de acordar nas trevas do real
na desolada promessa
do dia verdadeiro

Alexandre Manuel Vahía de Castro O'Neill de Bulhões
Poeta do movimento surrealista, faleceu em Lisboa a 21 de Agosto de 1986. 

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Se o amor pudesse




Se o amor pudesse de repente compreender
Toda loucura que um amor pode conter
Se ele pudesse, num momento de razão
Saber ao menos quanto dói uma paixão
Quem sabe o amor, ao descobrir a dor de amar
Partisse embora para nunca mais voltar
Mas me parece que uma prece ia nascer
Na voz daqueles que o amor mais fez sofrer
A lhe dizer que vale mais morrer de dor
Do que viver num paraíso sem amor

Vinícius de Moraes



quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Evasões


Oiço a tua voz
enlouquecida de palavras
dentro das quatro
paredes da minha pele.
A voz que foge
as palavras que caem
a pele que já não é minha.
Vestígios de uma
evasão a dois.

António Barroso Cruz



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terça-feira, 13 de agosto de 2013

Lembrança













Ponho um ramo de flores
na lembrança perfeita dos teus braços;
cheiro depois as flores
e converso contigo
sobre a nuvem que pesa no teu rosto;
dizes sinceramente
que é um desgosto.

Depois,
não sei porquê nem porque não,
essa recordação desfaz-se em fumo;
muito ao de leve foge a tua mão,
e a melodia já mudou de rumo.

Coisa esquisita é esta da lembrança!
Na maior noite
na maior solidão,
vem a tua presença verdadeira,
e eu vejo no teu rosto o teu desgosto,
e um ramo de flores, que não existe, cheira!

Miguel Torga

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Do Desejo



E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acertos.

Ou tenta-me de novo. Obriga-me.

Hilda Hilst

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domingo, 11 de agosto de 2013

Revimos a Grosseira Superfície do Amor

















Revimos a grosseira superfície do
amor 
Ninguém pudera corrompê-la tanto 
por actos e palavras 
Estivemos novamente deitados
na aspereza do seu leito 
Um ramo na mão tinhas e quiseste 
medi-lo com os lábios e metê-lo 
no centro doloroso do teu corpo
Eu via as tuas mãos que procuravam 
inseri-lo e guardavam 
nas linhas ávidas o seu limite grosso 
Interrompeste o 
sono magoado do meu corpo 
e comigo 
dormiste sobre as manchas depois 

Gastão Cruz

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sábado, 10 de agosto de 2013

A Ausente




Amiga, infinitamente amiga
Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à idéia dos meus.
Em algum lugar tuas mãos se crispam, teus seios
Se enchem de leite, tu desfaleces e caminhas
Como que cega ao meu encontro...
Amiga, última doçura
A tranqüilidade suavizou a minha pele
E os meus cabelos. Só meu ventre
Te espera, cheio de raízes e de sombras.
Vem, amiga
Minha nudez é absoluta
Meus olhos são espelhos para o teu desejo
E meu peito é tábua de suplícios
Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes
E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim
Como no mar, vem nadar em mim como no mar
Vem te afogar em mim, amiga minha
Em mim como no mar...

Vinicius de Moraes 


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sexta-feira, 9 de agosto de 2013

À Paris



O meu Paris é Johannesburg,
um Paris certamente menos luz,
mais barato e provinciano.

Mas Johannesburg lembra-me o Paris
que não conheço: o mesmo movimento
endemoninhado, as luvas brancas
do polícia sinaleiro, o brilho das montras,
a cor da moda, os mesmos amorosos
que se beijam sem pudor nos bancos
das áleas ensolaradas, o Sena
que não há e a Torre Eiffel
que também não

À noite janto no Montparnasse
de Hilbrow, que é o Quartier Latin
do sítio e olho essas mulheres
excêntricas e belíssimas
de pullover e slacks helanca.

Olho também esses efebos de pálpebras
cendradas, com os ademanes e o ar triste
de quem vive na perplexidade dos sexos.
Depois do turkish coffee meto-me
até ao Cul de Sac e fico-me
a ouvir o sax maravilhado
de Kippie Moeketsi. O jazz, sim,
é genuíno e tem um bite
todo local.

Aqui ninguém sabe quem sou,
aqui a minha importância é zero.
Em Paris também.

Rui Knopfli

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quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Nada sou, nada posso, nada sigo
















Nada sou, nada posso, nada sigo. 
Trago, por ilusão, meu ser comigo. 
Não compreendo compreender, nem sei 
Se hei de ser, sendo nada, o que serei. 

Fora disto, que é nada, sob o azul 
Do lato céu um vento vão do sul 
Acorda-me e estremece no verdor. 
Ter razão, ter vitória, ter amor 

Murcharam na haste morta da ilusão. 
Sonhar é nada e não saber é vão. 
Dorme na sombra, incerto coração.

Fernando Pessoa


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quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Sim, é claro,


Sim, é claro,
O Universo é negro, sobretudo de noite.
Mas eu sou como toda a gente,
Não tenha eu dores de dentes nem calos e as outras dores passam.
Com as outras dores fazem-se versos.
Com as que doem, grita-se.

A constituição íntima da poesia
Ajuda muito...
(Como analgésico serve para as dores da alma, que são fracas...)
Deixem-me dormir.

Álvaro de Campos
Hoje, Caetano Veloso comemora 71 anos. Parabéns





Caetano canta Vinicius de Moraes

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Soneto de Amigo

Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...

Vinicius de Moraes

sábado, 3 de agosto de 2013

Quase


Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão...Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh' alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!



De tudo houve um começo...e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que bebi mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Mário de Sá-Carneiro

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Era um redondo vocábulo

ZECA AFONSO  FAZ hoje 84 anos.



Era um redondo vocábulo
Uma soma agreste
Revelavam-se ondas
Em maninhos dedos
Polpas seus cabelos
Resíduos de lar,
Pelos degraus de Laura
A tinta caía
No móvel vazio,
Congregando farpas
Chamando o telefone
Matando baratas
A fúria crescia
Clamando vingança,
Nos degraus de Laura
No quarto das danças
Na rua os meninos
Brincando e Laura
Na sala de espera
Inda o ar educa

José Afonso

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