Palavras ditas ...

Se eu gosto de poesia?
Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor... Acho que a poesia está contida nisso tudo."
Carlos Drumond de Andrade

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Salette Tavares



A cama é uma piscina de lençóis onde se mergulham corpos.

Mergulho no profundo das suas águas lisas
para dormir
e amar.

Durmo submersa nos sonhos brancos e brandos
Amo liberta
no destapado claro
a nadar.

A cama é uma piscina de mar
onde as ondas nos cobrem e descobrem
onde as navegações se enterram e voam
peixes
no mistério.

A cama é o rio revolto das descobertas secretas
do sonho
e do amor.


Poeta e ensaísta moçambicana, nascida a 31 de Março de 1922, em Lourenço Marques,e falecida a 30 de Maio de 1994, em Lisboa, vivia em Portugal desde os dez anos.
Licenciada em Ciências Histórico-Filosóficas (1948), posteriormente especializou-se em filosofia, estética, linguagem e teoria da arte, em universidades francesas, espanholas e italianas. Em 1957, estreou-se na publicação de poesia com a edição de Espelho Cego,embora já se dedicasse a esta área desde finais dos anos 40, colaborando em diversas revistas poéticas.
Em 1992 foi editada toda a sua produção poética com a obra Poesia 1957-1971, que lhe valeu a conquista do Prémio do PEN Clube, um dos mais conceituados galardões literários de Portugal.
Na década de 60 publicou ensaios de estética na revista Brotéria. As suas reflexões sobre estética, divulgadas nessa década, influenciadas pelo incremento dos estudospsicológicos e pelo aparecimento da Gestalpsycholgie, a psicologia da forma, tomam como ponto de partida para a definição de uma ciência da comunicação poética o "facto de toda a perceção estética ser antes de mais uma perceção. Ou seja, um dos aspectos primeiros da experiência estética é o facto de a perceção estética ser uma forma de percepção, embora específica e mesmo especializada." (Forma e Criação, Lisboa, 1965,p. 5). A consciência de que "só há comunicação estética quando o fenómeno dacomunicação se completou de maneira total, ou seja, quando o fenómeno poético foi apreendido pela perceção", justifica uma preocupação com a forma, enquanto modo de apresentação da matéria poética, visível já na sua primeira coletânea, o que leva Fernando J. B. Martinho (1996, p. 447) a incluir a autora numa linha barroquizante da poesia dos anos 50. A valoração das potencialidades do significante linguístico, que, em Salette Tavares, é originalmente conjugada com a expressão subjetiva, situará esta autora entre as figuras mais conhecidas do movimento experimentalista, vindo a ser incluída nos cadernos antológicos de Poesia Experimental.

Texto retirado da Infopédia

segunda-feira, 28 de maio de 2012

José Craveirinha - 90º aniversário do seu nascimento

cerca de 1955


«Nasci a primeira vez em 28 de Maio de 1922. Isto num domingo. Chamaram-me Sontinho, diminutivo de Sonto. Isto por parte da minha mãe, claro. Por parte do meu pai, fiquei José. Aonde? Na Av. Do Zihlahla, entre o Alto Maé e como quem vai para o Xipamanine. Bairros de quem? Bairros de pobres.
Nasci a segunda vez quando me fizeram descobrir que era mulato…
A seguir, fui nascendo à medida das circunstâncias impostas pelos outros.
Quando o meu pai foi de vez, tive outro pai: seu irmão.
E a partir de cada nascimento, eu tinha a felicidade de ver um problema a menos e um dilema a mais. Por isso, muito cedo, a terra natal em termos de Pátria e de opção. Quando a minha mãe foi de vez, outra mãe: Moçambique.
A opção por causa do meu pai branco e da minha mãe preta.
Nasci ainda outra vez no jornal O Brado Africano. No mesmo em que também nasceram Rui de Noronha e Noémia de Sousa.
Muito desporto marcou-me o corpo e o espírito. Esforço, competição, vitória e derrota, sacrifício até à exaustão. Temperado por tudo isso.
Talvez por causa do meu pai, mais agnóstico do que ateu. Talvez por causa do meu pai, encontrando no Amor a sublimação de tudo. Mesmo da Pátria. Ou antes: principalmente da Pátria. Por parte de minha mãe, só resignação.
Uma luta incessante comigo próprio. Autodidacta.
Minha grande aventura: ser pai. Depois, eu casado. Mas casado quando quis. E como quis.
Escrever poemas, o meu refúgio, o meu País também. Uma necessidade angustiosa e urgente de ser cidadão desse País, muitas vezes, altas horas da noite.»

O Rio


Uma gota de chuva
A mais, e o ventre grávido
Estremeceu, da terra.
Através de antigos
Sedimentos, rochas
Ignoradas, ouro
Carvão, ferro e mármore
Um fio cristalino

Distante milênios
Partiu fragilmente
Sequioso de espaço
Em busca de luz.
Um rio nasceu.



Vinícius de Moraes

a fotografia foi retirada daqui

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Não me peçam razões



Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.

José Saramago

terça-feira, 22 de maio de 2012

Vive

Vive, dizes, no presente,
Vive só no presente.

Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Quero as cousas que existem, não o tempo que as mede.

O que é o presente?
É uma cousa relativa ao passado e ao futuro.
É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem.
Eu quero só a realidade, as cousas sem presente.
Não quero incluir o tempo no meu esquema.

Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas

como cousas.

Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.

Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.

Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.

Alberto Caeiro

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Piamente

na indestrutível
presença
obsessiva
dos factos
anos
ritos
passados
e do que ficou
marcado
para sempre
no corpo
e na escrita
juro
que acredito
piamente
que chegarei
ao fim
deste dia
nebuloso
e com vento
juro
que acredito
piamente
que não
desistirei

hoje


Américo Rodrigues

sexta-feira, 11 de maio de 2012

A Flor e a Náusea















Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cizenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que triste são as coisas, consideradas em ênfase.

Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam pra casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens macias avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Quando Ficares Velha

Vincent Van Gogh

Quando ficares velha, grisalha e sonolenta
E te aqueceres à lareira, pega neste livro
E lê-o devagar, sonha com o olhar meigo
E com as sombras profundas outrora nos teus olhos;

Quantos amaram os teus momentos de feliz encanto
E a tua beleza com amor falso ou autêntico,
Além daquele homem que amou em ti a alma peregrina
E as tristezas que alteravam o teu rosto;

E curvando-te mais sobre a lareira ao rubro
Murmura, um pouco triste, como o Amor se foi
E caminhou sobre as montanhas lá no alto
E escondeu o rosto numa multidão de estrelas.

William Butler Yeats

terça-feira, 8 de maio de 2012

Balada dos Aflitos



Irmãos humanos tão desamparados
a luz que nos guiava já não guia
somos pessoas - dizeis - e não mercados
este por certo não é tempo de poesia
gostaria de vos dar outros recados
com pão e vinho e menos mais valia.

Irmãos meus que passais um mau bocado
e não tendes sequer a fantasia
de sonhar outro tempo e outro lado
como António digo adeus a Alexandria
desconcerto do mundo tão mudado
tão diferente daquilo que se queria.

Talvez Deus esteja a ser crucificado
neste reino onde tudo se avalia
irmãos meus sem valor acrescentado
rogai por nós Senhora da Agonia
irmãos meus a quem tudo é recusado
talvez o poema traga um novo dia.

Rogai por nós Senhora dos Aflitos
em cada dia em terra naufragados
mão invisível nos tem aqui proscritos
em nós mesmos perdidos e cercados
venham por nós os versos nunca escritos
irmãos humanos que não sois mercados.

Manuel Alegre

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Amor silêncio amargo


Amor silêncio amargo a roçar-me a morte
grito partido do vidro sobre o peito
ilha deserta no meio das capitais do norte
grilhetas ajustadas no rio em que me deito.

Distância cumulada remanso de uma espera
ponte da aventura do dois à unidade
amor brilho raiando a chave do desejo
minuto adormecido ao pé da eternidade.


Amor tempo suspenso, ó lânguido receio,
no pranto do meu canto és a presença forte
estame estremecido dissimulado anseio
amor milagre gesto incandescente porte.

Amor olhos perdidos a riscar desenhos
em largo movimento o espaço circular
amor segundo breve, lanceta, tempo eterno
no rápido castigo da lua a gotejar.

Salette Tavares

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