Palavras ditas ...

Se eu gosto de poesia?
Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor... Acho que a poesia está contida nisso tudo."
Carlos Drumond de Andrade

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

História Antiga




Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto...
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.
E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da nação.
Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.

Miguel Torga.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia





O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,

Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia

Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia,


O Tejo tem grandes navios

E navega nele ainda,

Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,

A memória das naus.


O Tejo desce de Espanha

E o Tejo entra no mar em Portugal.

Toda a gente sabe isso.

Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia

E para onde ele vai

E donde ele vem.

E por isso, porque pertence a menos gente,

É mais livre e maior o rio da minha aldeia.


Pelo Tejo vai-se para o Mundo.

Para além do Tejo há a América

E a fortuna daqueles que a encontram.

Ninguém nunca pensou no que há para além

Do rio da minha aldeia.


O rio da minha aldeia não faz pensar em nada

Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

Alberto Caeiro heterónimo de Fernando António Nogueira Pessoa (Lisboa, 13 de Junho de 1888 — Lisboa, 30 de Novembro de 1935)

António Mário Lopes Pereira Viegas (Santarém, 10 de Novembro de 1948 — Lisboa, 1 de Abril de 1996)

Música "Inquietude" de Bernardo Sassetti

domingo, 1 de outubro de 2017

Teoria do amor


Amor é mais do que dizer.
Por amor no teu corpo fui além
e vi florir a rosa em todo o ser
fui anjo e bicho e todos e ninguém.

Como Bernard de Ventadour amei
uma princesa ausente em Tripoli
amada minha onde fui escravo e rei
e vi que o longe estava todo em ti.

Beatriz e Laura e todas e só tu
rainha e puta no teu corpo nu
o mar de Itália a Líbia o belvedere.

E quanto mais te perco mais te encontro
morrendo e renascendo e sempre pronto
para em ti me encontrar e me perder.

Manuel Alegre, in “Obra Poética” 

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Aniversário



No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino.
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa.
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...


Álvaro de Campos

domingo, 24 de setembro de 2017

Relvão


erráticos em areias de monotonias
e sonâmbulos de enganos.
cansados, doridos, pisando os dias,
avocando passados.
eis como cheguei e me viste.
eis como não te vi. e devia...
vi o sorriso, a flor
sem imaginar o peso das folhas
cheguei a crer que há Destino
e nas areias do outro tempo
- e as fraldas da Serra? brincaste no Relvão?
vimo-nos, tocamo-nos,
e fizemos a jura infantil
que em adolescentes ignoramos.
e neste tempo de brasa e cinzas
em silêncios reatamos.

Carlos Gil


sábado, 23 de setembro de 2017

O teu riso - No aniversário da morte de Pablo Neruda

Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue manchar
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.

Pablo Neruda 

sábado, 20 de maio de 2017

Baixa Laurentina



Desde a esquina do djambu
‘té à do continental
trato os passeios por tu
e um parquímetro mais cómodo
é meu guru pessoal
Encostado e repimpão

olho a ladeira plana
subindo a partir do chão
de cada ponto opção
dos extremos da semana

Conto os passos de quem passa
passeando as dores passivas
passa uma velha uva passa
uma manga femeaça
um ceguinho sem mordaça
um vendedor de caraças
e olhodoins de ameaça
miram rebanhos de chivas.

Mil uvas de várias cores
vão irmãs do mesmo cacho.
Do branco ao tinto é um ror
de perfumes. Preto é cor
negro é raça dum diacho!

Avé, vida da ré pública!
cruza ao gosto do gatilho
numa cruz que não explica
onde é que a cruz simplifica
a trajectória do milho

tudo vai melhor amigo
com coca cola e quejandos
espetam a palha no umbigo
e iniciem o mim migo
ciclo de dor e castigo
pescadinha ao gosto antigo
memimigo memimigo
entoladinhos e bambos

vou aos saldos do jònór
comprar mais antipatia
e uma quinhebta de dor
no muro sotomaior
a ajudar a rebeldia

faço mira pela estrela
dum super branco mercedes
e enquadro a ramela
do cego de sentinela
a uma vitrine de sedas

que capulana bonita
traz a mitó amaral
veio, juro, da botica
mais chicqueira, mais bonita
mais xi... cara patrão! (chita
de pele humana e mortal)

raios pátriam esta tonta
partida dos deuses. Haja
um fim para esta ronda
de paisanos songa monga
com apetites de gaja...

do continental ao djambu
- meu privado festival –
trato os passeios por tu
e um parquímetro guru
é minha espinha dorsal...

Grabato Dias (António Quadros)

imagem copiada aqui

segunda-feira, 1 de maio de 2017

Quem Pode Impedir A Primavera



Quem pode impedir a Primavera
Se as árvores se vão cobrir de flores
E o homem se sentiu sorrir à Vida?
Quem pode impedir a surda guerra
Que vai nos campos deslocando as pedras
– Mudas comparsas no ritmo das estações-
E da terra inerte ergueu milhares de lanças
Que a tremer avançam, cintilantes, para o limite
Em que a luz aquosa se derrama
Como um mar infinito onde o arado
Abre caminhos misteriosos à seiva inquieta!
Quem pode impedir a Primavera
Sa estamos em Maio e uma ternura
Nos faz abrir a porta aos viandantes
E o amor se abriga em cada um dos nossos gestos!
Quem?…
Se os sonhos maus do Inverno dão lugar à Primavera!

Ruy Cinatti

sábado, 1 de abril de 2017

Trova do mês de Abril















Foram dias foram anos a esperar por um só dia.
Alegrias. Desenganos. Foi o tempo que doía
Com seus riscos e seus danos. Foi a noite e foi o dia
Na esperança de um só dia.

Foram batalhas perdidas. Foram derrotas vitórias.
Foi a vida (foram vidas). Foi a História (foram histórias)
Mil encontros despedidas. Foram vidas (foi a vida)
Por um só dia vivida.

Foi o tempo que passava como nunca se passasse.
E uma flauta que cantava como se a noite rasgasse
Toda a vida e uma palavra: liberdade que vivia
Na esperança de um só dia.

Musa minha vem dizer o que nunca então disse
Esse morrer de viver por um dia em que se visse
um só dia e então morrer. Musa minha que tecias
um só dia dos teus dias.

Vem dizer o puro exemplo dos que nunca se cansaram
musa minha onde contemplo os dias que se passaram
sem nunca passar o tempo. Nesse tempo em que daria
a vida por um só dia.

Já muitas águas correram já muitos rios secaram
batalhas que se perderam batalhas que se ganharam.
Só os dias morreram em que era tão curta a vida
Por um só dia vivida.

E as quatros estações rolaram com seus ritmos e seus ritos.
Ventos do Norte levaram festas jogos brincos ditos.
E as chamas não se apagaram. Que na ideia a lenha ardia
Toda a vida por um dia.

Fogos-fátuos cinza fria. Musa minha que cantavas
A canção que se vestia com bandeiras nas palavras:
Armas que o tempo tecia. Minha vida toda a vida
Por um só dia vivida.

Manuel Alegre, in "Atlântico"

quarta-feira, 8 de março de 2017

Mulher


A mulher não é só casa
mulher-loiça, mulher – cama
ela é também mulher-asa,
mulher-força, mulher-chama

E é preciso dizer
dessa antiga condição
a mulher soube trazer
a cabeça e o coração

Trouxe a fábrica ao seu lar
e ordenado à cozinha
e impôs a trabalhar
a razão que sempre tinha

Trabalho não só de parto
mas também de construção
para um filho crescer farto
para um filho crescer são

A posse vai-se acabar
no tempo da liberdade
o que importa é saber estar
juntos em pé de igualdade

Desde que as coisas se tornem
naquilo que a gente quer
é igual dizer meu homem
ou dizer minha mulher

José Carlos Ary dos Santos

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