Palavras ditas ...

Se eu gosto de poesia?
Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor... Acho que a poesia está contida nisso tudo."
Carlos Drumond de Andrade

domingo, 18 de novembro de 2018

É tarde


É tarde
nenhum sono
repõe o que não vivi

agora

resta um único desfecho:
de novo acordar por dentro
e acordar sempre
até que volte a ser cedo.”

Mia Couto in "Raiz de orvalho e outros poemas"

sábado, 17 de novembro de 2018



Sorri quando a dor te torturar
E a saudade atormentar
Os teus dias tristonhos vazios

Sorri quando tudo terminar
Quando nada mais restar
Do teu sonho encantador

Sorri quando o sol perder a luz
E sentires uma cruz
Nos teus ombros cansados doridos

Sorri vai mentindo a sua dor
E ao notar que tu sorris
Todo mundo irá supor
Que és feliz

Charles Chaplin

terça-feira, 25 de setembro de 2018

Guarda tu agora o que eu, subitamente, perdi




Guarda tu agora o que eu, subitamente, perdi
talvez para sempre ― a casa e o cheiro dos livros,
a suave respiração do tempo, palavras, a verdade,
camas desfeitas algures pela manhã,
o abrigo de um corpo agitado no seu sono.




Guarda-o
serenamente e sem pressa, como eu nunca soube.

E protege-o de todos os invernos ― dos caminhos
de lama e das vozes mais frias. Afaga-lhe
as feridas devagar, com as mãos e os lábios,
para que jamais sangrem. E ouve, de noite,
a sua respiração cálida e ofegante
no compasso dos sonhos, que é onde esconde
os mais escondidos medos e anseios.

Não deixes nunca que se ouça sozinho no que diz
antes de adormecer. E depois aguarda que,

na escuridão do quarto, seja ele a abraçar-te,
ainda que não te tenha revelado uma só vez o que queria.

Acorda mais cedo e demora-te a olhá-lo à luz azul
que os dias trazem à casa quando são tranquilos.

E nada lhe peças de manhã ― as manhãs pertencem-lhe;
deixa-o a regar os vasos na varanda e sai,
atravessa a rua enquanto ainda houver sol.

E assim
haverá sempre sol e para sempre o terás,
como para sempre o terei perdido eu, subitamente,
por assim não ter feito.

Mª do Rosário Pedreira

in A casa e o cheiro dos livros (Quetzal, 1996)
in Poesia reunida (Quetzal, 2012)

sábado, 16 de junho de 2018

Sei quem és ...



Sei quem és, mas falta-me o teu nome - nem
sempre as palavras chegam até aos olhos. Mas
não te importes: há outras coisas que nunca

esquecerei - os meus braços ancorados no teu
corpo, uma cegueira, e o mundo de repente tão
pequeno - e essas, tu não sabes, mas faltam-me

também. O teu rosto, dá-mo por um segundo. A
tua boca, claro. São tantos anos sem ti nos vincos
da minha saia, tanta vida guardada para um dia

assim. Vira-te agora, pois. Deixa cair esse sorriso
dos teus lábios - nos meus há-de deitar-se como
o sol, ao fim da tarde, quando de novo sobre eles

respirares com o perfume salgado das marés. Mas
nada digas do meu corpo cansado - é uma camisa
de verão esquecida numa praia, e a roupa é sempre
o menos, tanto faz. Não vês quem sou? O tempo

não pode ter castigado apenas o meu olhar. Vem
para mais perto e espreita devagar: são tantos anos
sem os teus braços nas mangas do meu vestido,
tanto sangue guardado nas veias para uma noite

assim. E tu já vais?

Maria do Rosário Pedreira , in Poesia Reunida- Prémio Inês de Castro.

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Espiral


No oculto do ventre,
o feto se explica como o Homem:
em si mesmo enrolado
para caber no que ainda vai ser.

Corpo ansiando ser barco,
água sonhando dormir,
colo em si mesmo encontrado.

Na espiral do feto,
o novelo do afecto
ensaia o seu primeiro infinito.

                                                                                                    Mia Couto in Tradutor de Chuvas
                                                                                                  

sexta-feira, 13 de abril de 2018

(do) beijo ...



Do beijo fica um sabor, 
do sabor uma lembrança, 
um vento leve, uma espuma. 

Do beijo fica um sereno 
olhar, o amor de coisas
minúsculas e humildes, 
um pássaro que vai e vem 
da nossa boca às palavras. 
Do beijo fica, suprema, 
a descoberta da morte. 
Um vento leve, uma espuma 
salgada à flor dos lábios.


Fernando Assis Pacheco

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Eu


medos. enformam-me medos
e tanto que finjo quando os olho e lhes digo: ó sonhos! ó maravilhas!…

medo? medo até de fugir.
como num filme ou num romance se foge
num azul, numa nuvem, em duas linhas
acreditando que tudo cabe num peito
(os medos cabem na mão).

e minto. e sonho. e busco a coragem que me culpa
num peito-feito de mentiras.
sorrisos escritos. falas doces. horizontes de luxo.
em rodapé: nuvens ínvias.

e sem medo.
são os meus sonhos, braçadas no meu mar.
aleluias nos meus dias.
a mágica antes da noite.

eu nunca sonho. isto é:
eu nunca sonho quando adormeço.
dizem que não nos lembramos dos sonhos que temos quando adormecidos
mas que sonhamos sempre. sempre.
o sono e o sonho dão as mãos, dizem,
são bons amigos e nunca se esquecem um do outro.

eu? eu nunca sonho.
eu lembrar-me-ia se os tivesse.
tenho tantos acordado!
e, acaso os tivesse, adormecido, porque é que não me lembraria?
porquê gritaria? porquê me revoltaria?

(eu disse: os meus sonhos são o medo.
um disfarce, uma roupa que visto,
agasalho, pintura,
um duplo que não existe)

: durante a noite, vão de vida,
- que dizem onírica, riquíssima, mas dela não me lembro de nada,
eu tremo.
choro.
até grito.
o meu corpo tem convulsões. grita.
acho que também chora
mas quando a manhã me acorda
bem procuro nos lençóis (mas nunca encontro)
marcas dos sonhos ou das lágrimas, um qualquer sémen de dor:
os gritos nocturnos não ecoam quando o dia nasce.

sonhos? bah…

eu não sonho: grito.
não sorrio: tremo, tremelico.

e durmo. dormito no medo de acordar.

depois? volta tudo. tudo.
o medo abriga-se, mau diurno, e reinicio-me no fantasiar.

a sonhar.
vidas.
sorrisos.
nuvens sem medos e gritos
e tão, tão bonito, cuidado, credível
como não acreditar?
«amanhã! amanhã é que é!...»

e acaba-se o chorar.
o tremer.
o longo dormitar.

os dias assim são longos.
maiores que as noites (delas nada recordo).
gritos, choros, tremores,
sei-os em segunda mão. eu?
eu durmo.
eu durmo.
e da noite nada sei ou quero saber
(eu durmo, eu durmo,
e tenho um truque para quando acordar.)

e, se me apetece chorar
se desperto
se acordo
se
lavo a cara e minto,
e
e
e

eu disse: enformam-me medos.

medos.
por isso aldrabo sonhos, minto, faço versos
e esmero-me a fantasiar.

Carlos Gil

sábado, 24 de fevereiro de 2018

La canción más hermosa del mundo




Yo tenía un botón sin ojal, un gusano de seda, 
medio par de zapatos de clown y un alma en almoneda, 
una hispano olivetti con caries, un tren con retraso, 
un carné del Atleti, una cara de culo de vaso, 

un colegio de pago, un compás, una mesa camilla, 
una nuez, o bocado de Adán, menos una costilla, 
una bici diabética, un cúmulo, un cirro, una strato, 
un camello del rey Baltasar, una gata sin gato, 

mi Annie Hall, mi Gioconda, mi Wendy, las damas primero, 
mi Cantinflas, mi Bola de Nieve, mis tres Mosqueteros, 
mi Tintín, mi yo-yo, mi azulete, mi siete de copas, 
el zaguán donde te desnudé sin quitarte la ropa. 

Mi escondite, mi clave de sol, mi reloj de pulsera, 
una lámpara de Alí Babá dentro de una chistera, 
no sabía que la primavera duraba un segundo, 
yo quería escribir la canción más hermosa del mundo. 

Les presento a mi abuelo bastardo, a mi esposa soltera, 
al padrino que me apadrinó en la legión extranjera, 
a mi hermano gemelo, patrón de la merca ambulante, 
a Simbad el marino que tuvo un sobrino cantante, 

al putón de mi prima Carlota y su perro salchicha, 
a mi chupa de cota de mallas contra la desdicha, 
mariposas que cazan en sueños los niños con granos 
cuando sueñan que abrazan a Venus de Milo sin manos. 

Me libré de los tontos por ciento, del cuento del bisnes,
dando clases en una academia de cantos de cisne, 
con Simón de Cirene hice un tour por el monte Calvario, 
¿qué harías tú si Adelita se fuera con un comisario? 

Frente al cabo de poca esperanza arrié mi bandera, 
si me pierdo de vista esperadme en la lista de espera, 
heredé una botella de ron de un clochard moribundo, 
olvidé la lección a la vuelta de un coma profundo. 

Nunca pude cantar de un tirón 
la canción de las babas del mar, del relámpago en vena, 
de las lágrimas para llorar cuando valga la pena, 
de la página encinta en el vientre de un bloc trotamundos, 
de la gota de tinta en el himno de los iracundos. 

Yo quería escribir la canción más hermosa del mundo

Joaquín Sabina

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Pai, Dizem-me que Ainda Te Chamo



Pai, dizem-me que ainda te chamo, às vezes, durante
o sono - a ausência não te apaga como a bruma
sossega, ao entardecer, o gume das esquinas. Há nos
meus sonhos um território suspenso de toda a dor,
um país de verão aonde não chegam as guinadas
da morte e todas as conchas da praia trazem pérola. Aí

nos encontramos, para dizermos um ao outro aquilo
que pensámos ter, afinal, a vida toda para dizer; aí te
chamo, quando a luz me cega na lâmina do mar, com
lábios que se movem como serpentes, mas sem nenhum
ruído que envenene as palavras: pai, pai. Contam-me

depois que é deste lado da noite que me ouvem gritar
e que por isso me libertam bruscamente do cativeiro
escuro desse sonho. Não sabem

que o pesadelo é a vida onde já não posso dizer o teu
nome - porque a memória é uma fogueira dentro
das mãos e tu onde estás também não me respondes.

Maria do Rosário Pedreira, in 'Nenhum Nome Depois' 

Em destaque

orgasmo

fui ver o mar fez-se a mim fiz-me a ele as ondas desta vez tombaram de pé e espumaram de gozo  Bénèdicte Houart (no dia internacional do org...