Palavras ditas ...

Se eu gosto de poesia?
Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor... Acho que a poesia está contida nisso tudo."
Carlos Drumond de Andrade

domingo, 28 de março de 2021

A memória dos dias


Correste a dizer que o dia vinha às portas da saudade
E cobriste de mil flores as varandas da cidade
Ao cantar enrouqueceste mil canções feitas à toa
Dançaste todas as ruas embriagadas de Lisboa
Leste os clássicos do tempo como toda a novidade
E a sonhar adormeceste no prazer da liberdade
Inventando mil amigos
Esquecendo velhos perigos
Acordaste em sobressalto do teu sonho meio ferido
Dos confins do pesadelo, no limite dos sentidos
Soçobrado na ideia mais ou menos dolorosa
Que te negavam medonhos o teu plano cor-de-rosa
E na fúria dos enganados, na febre dos desvalidos
Na razão dos maltratados entre abraços desabridos
No delírio prematuro
Ainda foste forte e duro
Roda a espiral da história entre as garras da agonia
Diz adeus, ó meu amor, que eu hei-de voltar um dia
E deixo-te uma palavrinha para te lembrares de mim
Perfumada pelo cravo, amanhã pelo alecrim
Deixo-te uma palavrinha
Para te lembrares de mim



sábado, 27 de março de 2021

Metamorfose



quando o medo puxava lustro à cidade
eu era pequeno
vê lá que nem casaco tinha
nem sentimento do mundo grave
ou lido Carlos Drummond de Andrade

os jacarandás explodiam na alegria secreta
de serem vagens e flores vermelhas
e nem lustro de cera havia
para que o soubesse
na madeira da infância
sobre a casa

a Mãe não era ainda mulher
e depois ficou Mãe
e a mulher é que é a vagem e a terra
então percebi a cor
e a metáfora

mas agora morto Adamastor
tu viste-lhe o escorbuto e cantaste a madrugada
das mambas cuspideiras nos trilhos do mato
falemos dos casacos e do medo
tamborilando o som e a fala sobre as planícies verdes
e as espigas de bronze
as rótulas já não tremulam não
e a sete de Março chama-se Junho desde um dia de há muito
com meia dúzia de satanhocos moçambicanos
todos poetas gizando a natureza e o chão no parnaso das balas
falemos da madrugada e ao entardecer
porque a monção chegou
e o último insone povoa a noite de pensamentos grávidos
num silêncio de rãs a tisana do desejo
enquanto os tocadores de viola
com que latas de rícino e amendoim
percutem outros tendões de memória
e concreta
a música é o brinquedo
a roda
e o sonho
das crianças que olham os casacos
e riem
na despudorada inocência deste clarão matinal
que tu
clandestinamente plantaste
Aos Gritos

Luís Carlos Patraquim

domingo, 21 de março de 2021

puzzia do dia das poesias



há no ano um dia
em que por pudor uso silêncio

todos os outros minto:
minto à musa, minto à poesia, à rima
e até a mim um trauteio invento:
digo-me vate, faço puzias,
em poemas sou profícuo e vasto.
mas escondo-me por vergonha no dia
que da poesia fizeram monumento.
nesse dia, faça chuva ou sopre vento
riam-se as musas e assoprem-me a rima,
nesse dia, poesia, eu não faço.

aquele que dizem já ser amanhã,
dia em que se rasga a má rima e pisa-se o descaramento
de sem vergonha dizer, com lamento,
deste dia não ser meu e, até
se rimar, até disso,
hoje eu, por pudor,
rasgo este papel e guardarei silêncio.


Carlos Gil

(20.Março.2007)

sábado, 6 de março de 2021

Amei-te sem saberes






Amei-te sem saberes
No avesso das palavras
na contrária face
da minha solidão
eu te amei
e acariciei
o teu imperceptível crescer
como carne da lua
nos nocturnos lábios entreabertos

E amei-te sem saberes
amei-te sem o saber
amando de te procurar
amando de te inventar

No contorno do fogo
desenhei o teu rosto
e para te reconhecer
mudei de corpo
troquei de noites
juntei crepúsculo e alvorada


Para me acostumar
à tua intermitente ausência
ensinei às timbilas

a espera do silêncio


Mia Couto, em “Raiz de Orvalho e outros poemas”. Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Fotografia de Jean Yves Donnard - Verão 2009 em Belo Horizonte

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