Palavras ditas ...

Se eu gosto de poesia?
Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor... Acho que a poesia está contida nisso tudo."
Carlos Drumond de Andrade

domingo, 26 de janeiro de 2014

...aqui e agora ...leio Nuno Júdice e ...





















O que tenho para te dar? Uma gramática de sentimentos,
verbos sem o complemento de uma vida, os substantivos
mais pobres de um vocabulário íntimo — o amor, o desejo,
a ausência. Que frase construiremos com tão pouco? A
que léxico da paciênc...ia iremos roubar o que nos falta?
Então, ofereço-te uma outra casa. As paredes têm a
consistência do verso; o tecto, o peso de uma estrofe.
Abro-te as suas portas; e o sol entra pela janela de
uma sílaba, com o seu logo vocálico, como se uma
palavra pudesse aquecer o frio que te envolve.
E pergunto-te: que outras palavras queres? A música
sonora de um ócio? O espesso manto com que o veludo
se escreve? O fundo luminoso do azul? Poderia dar-te
todas as palavras na caixa do poema; ou emprestar-te
o canto efémero em que se escondem do mundo.
Mas não é isso que me pedes. E a vida que pulsa
por entre advérbios e adjectivos esfuma-se depressa,
quando procuramos seguir a linha do verso, O que fica?,
perguntas-me. Um encontro no canto da memória. Risos,
lágrimas, o terno murmúrio da noite. Nada, e tudo.

Nuno Júdice

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

os olhos


se um gesto me definisse seria o de te afastar o cabelo para te ver melhor o rosto que me enche de bravura

e só te vejo pelos meus olhos por serem os que te vêem mais bela
por isso os escolho sempre
tenho os olhos feitos à medida da tua cara
e só tenho olhos para ti
quando não estás sou invisível e quase invisual
a visão não me serve de nada
vejo mas sem cor e é pior que a preto e branco
é desfocado
é esbatido
e sem chama
e sem cheiro
contigo cheira bem
sabe bem
ouve bem o que digo porque é sincero  
     porque se não fosse todo eu era falso
cada falso que há aí merecia cadeia ou morte
mas com os teus braços finos a fazer as vezes da corda que me serpenteia o pescoço para me matar de felicidade

e só te quero a ti
e só te vejo a ti como a última noite do Verão mais quente
com o céu mais estrelado
com a lua mais cúmplice
com os gestos mais carinhosos
e tiro-te o cabelo da frente com a ajuda da minha mão direita que só existe para isso
e vou para te beijar mas não o faço
hesito porque os meus olhos pediram-me que os deixasse olhar para ti mais uma vez
e eu deixo  
     para eles não chorarem muito

João Negreiros

Imagem de José Leão

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Sobre um simples significante


Meados de Janeiro. No aeroporto duma capital
- Leitores eventuais se quereis saber qual
terei de ser sincero como sempre o sou e não apenas em geral:
o caso que vos conto aconteceu no europeu Nepal -
um grupo de pessoas num encontro casual
desses que nem viriam no melhor jornal
de qualquer dos países donde alguém de nós seria natural
decerto por alguma circunstância puramente acidental
emprega no decurso da conversa a palavra "natal"
embora a pensem todos na respectiva língua original
E sem saber porquê eu sinto-me subitamente mal
Ainda que me considerem um filólogo profissional
e tenha escrito páginas e páginas sobre qualquer fenómeno fonético banal
não conheço a palavra. Porventura terá equivalente em Portugal?
Deve dizer-me alguma coisa pois me sinto mal
mas embora disposto a consultar o português fundamental
ia jurar que nem sequer a usa o leitor habitual
de dicionários e glossários e vocabulários do idioma nacional
e o mesmo acontece em qualquer língua ocidental
das quais pelo menos possuo uma noção geral
conseguida aliás por meio de um esforço efectivo e real
E ali naquela sala principal
daquele aeroporto do Nepal
enquanto esperam pelo seu transporte habitual
embora o tempo passe o assunto central
da conversa daquele grupo de gente ocasional
continua na mesma a ser o do "natal"
Tratar-se-á de um facto universal?
Alguma festa? Uma tragédia mundial?
Consulto as caras sem obter satisfação cabal
Li por exemplo a Bíblia li Pessoa e pertenci à igreja ocidental
e tenho de reconhecer que não sei nada do natal
Mas se assim é porque diabo sofro como sofro eu afinal'
Porque me atinge assim palavra tão fatal?
Que passado distante permanece actual?
Como é que uma mera palavra se me torna visceral?
Ninguém daquela gente reunida no Nepal
um professor um engenheiro ou um industrial
um técnico uma actriz um intelectual
um revolucionário ou um príncipe real
que ali nas suas línguas falam do natal
aí por quinze de Janeiro e num dia invernal
pressentem como sofre este filólogo profissional
Eu tenho atrás de mim uma vida que por sinal
começada no campo e num quintal
junto da pedra da árvore e do animal
debaixo das estrelas e num meio natural
vida continuada na escola entre o tratado e o manual
me assegurou prestígio internacional
Mas para que me serve tudo isso se naquela capital
entre pessoas que inocentemente falam do natal
eu que conheço as coisas e as palavras de maneira oficial
que como linguista as trato de igual para igual
travo afinal inexorável batalha campal
com tão simples significante como o de "natal"?
E entre línguas diversas num aeroporto do Nepal
alguém bem insensível sofre mais do que um sentimental
pois pressente em Janeiro que se o foi, foi há muito o Natal

Ruy Belo

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Alegria


De passadas tristezas, desenganos 
amarguras colhidas em trinta anos, 
de velhas ilusões, 
de pequenas traições 
que achei no meu caminho..., 
de cada injusto mal, de cada espinho 
que me deixou no peito a nódoa escura 

duma nova amargura... 
De cada crueldade 
que pôs de luto a minha mocidade... 
De cada injusta pena 
que um dia envenenou e ainda envenena 
a minha alma que foi tranquila e forte... 
De cada morte 
que anda a viver comigo, a minha vida, 
de cada cicatriz, 
eu fiz 
nem tristeza, nem dor, nem nostalgia 
mas heróica alegria. 

Alegria sem causa, alegria animal 
que nenhum mal 
pode vencer. 
Doido prazer 
de respirar! 
Volúpia de encontrar 
a terra honesta sob os pés descalços. 

Prazer de abandonar os gestos falsos, 
prazer de regressar, 
de respirar 
honestamente e sem caprichos, 
como as ervas e os bichos. 
Alegria voluptuosa de trincar 
frutos e de cheirar rosas. 

Alegria brutal e primitiva 
de estar viva, 
feliz ou infeliz 
mas bem presa à raíz. 

Volúpia de sentir na minha mão, 
a côdea do meu pão. 
Volúpia de sentir-me ágil e forte 
e de saber enfim que só a morte 
é triste e sem remédio. 
Prazer de renegar e de destruir 
                                   o tédio, 

Esse estranho cilício, 
e de entregar-me à vida como a 
                                   um vício. 

Alegria! 
Alegria! 
Volúpia de sentir-me em cada dia 
mais cansada, mais triste, mais dorida 
mas cada vez mais agarrada à Vida! 

Fernanda de Castro, in "D'Aquém e D'Além Alma"

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