Palavras ditas ...

Se eu gosto de poesia?
Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor... Acho que a poesia está contida nisso tudo."
Carlos Drumond de Andrade

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

insinceridade


quis-nos aos dois enlaçados
meu amor ao lusco-fusco
mas sem saber o que busco:
há poentes desolados
e o vento às vezes é brusco

nem o cheiro a maresia
a rebate nas marés
na costa de lés a lés
mais tempo nos duraria
do que a espuma a nossos pés

a vida no sol-poente
fica assim num triste enleio
entre melindre e receio
de que a sombra se acrescente
e nós perdidos no meio

sem perdão e sem disfarce,
sem deixar uma pegada
por sobre a areia molhada,
a ver o dia apagar-se
e a noite feita de nada

por isso afinal não quero
ir contigo ao lusco-fusco,
meu amor, nem é sincero
fingir eu que assim te espero,
sem saber bem o que busco.

Vasco Graça Moura

A mulher tem a química dos animais...


a mulher tem a química dos animais e o pólen das plantas,
e da Grande Alma rouba o Apetite para multiplicar as coisas que nascem.
Os contágios são calmos.
Se uma flor voasse perdia o cheiro;
e se o pássaro tivesse aroma de rosa, de certeza seria coxo.
Porque o mundo se organizou todo de uma vez e depois calou-se.
Ficámos nós, sós, e a Filosofia.
A pedra calada, o animal grunhe,
a erva cresce tão lenta que só a vemos quando ela é adulta,
e os cães ladram debaixo do Sol.
Todos somos resíduos imperfeitos
e os organizadores do Baile saíram logo no início,
deixando a Música, mas não os passos.
Por isso tropeçamos,
partimos a unha má e boa,
apaixonamo-nos por uma mulher e depois já é outra,
e, no Fundo, o que queríamos era sossego e não dançar.
Do que temos medo é da solidão, temos de o reconhecer,
esse caixão que vem antes do tempo,
e nos fecha dos outros e do dia.
O que queremos é sossego;
nem Mistérios nem passos de dança,
apaguem a Música.

Gonçalo M. Tavares

Imagem: Pintura em aquarela de Molly Brill copiado daqui

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Só assim será poema


Que o poema tenha carne
ossos vísceras destino
que seja pedra e alarme
ou mãos sujas de menino.

Que venha corpo e amante
e de amante seja irmão
que seja urgente e instante
como um instante de pão.

Só assim será poema
só assim terá razão
só assim te vale a pena
passá-lo de mão em mão.

Que seja rua ou ternura
tempestade ou manhã clara
seja arado e aventura
fábrica terra e seara.

Que traga rugas e vinho
berços máquinas luar
que faça um barco de pinho
e deite as armas ao mar.

Só assim será poema
só assim terá razão
só assim te vale a pena
passá-lo de mão em mão.

Hélia Correia
1949

Imagem copiada daqui

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

A um ti que eu inventei

Pensar em ti é coisa delicada.
É um diluir de tinta espessa e farta
e o passá-la em finíssima aguada
com um pincel de marta.
Um pesar grãos de nada em mínima balança,
um armar de arames cauteloso e atento,
um proteger a chama contra o vento,
pentear cabelinhos de criança.
Um desembaraçar de linhas de costura,
um correr sobre lã que ninguém saiba e oiça,
um planar de gaivota como um lábio a sorrir.
Penso em ti com tamanha ternura
como se fosses vidro ou película de loiça
que apenas com o pensar te pudesses partir.

António Gedeão
1906 - 1997

sábado, 25 de fevereiro de 2012

O Essencial, só o coração vê



A vida não passa de uma oportunidade de encontro; só depois da morte se dá a junção; 
os corpos apenas têm o abraço, as almas têm o enlace.

Victor Hugo
1802-1885
Poeta, Escritor, Dramaturgo, Político


Pintura de Raul Ferreira Rocha 
Poesia para ver / memórias da alma / esquissos digitais

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Entre as ruínas e a erva verde escuto

Entre as ruínas e a erva verde escuto
não tuas palavras mas a sua melodia
o ritmo nu das sílabas nos teus lábios
e os silêncios escandidos como quem

cria à noite uma composição ricercar
para piano e oboé em longo intenso
diálogo As tuas palavras só as escuto
aqui longe de ti e da ficção do tempo

e da história que também nós fomos
Falas em transe de júbilo e esperança
és como uma constelação iridescente
acabada de surgir nos céus e só falas

destes meus problemas de expressão
mas entendes o que diz a minha mão

P.M.Carregã


Copiado DAQUI

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Zeca Afonso

Zeca Afonso faleceu no dia 23 de Fevereiro, em Setúbal. Tinha 57 anos.  

Alguns aspectos da sua Vida e Obra - AQUI



Como se faz um canalha (1)

Conheci-te ainda moço
Ou como tal eu te via
Habitavas o Procópio
Ias ao Napoleão

Mas ninguém sabia ao certo
Como se faz um canalha
Se a memória me não falha
Tinhas o mundo na mão

Alguma gente enganaste
(A fé da muita amizade
Tem também as suas falhas
Hoje fazes alianças

A bem da Santa União
Em abono da verdade
A tua Universidade
Tem mesmo um nome: Traição

Um social-democrata
Não foge ao Grão-Timoneiro
Basta citar o paleio
O major psicopata

Já são tantos namorados
Só falta o Holden Roberto
Devagar se vai ao longe
Nunca te vimos tão perto

Nunca te vimos tão longe
Daquilo que tens pregado
Nunca te vimos tão fora
Da vida do Zé Soldado

Ninguém mais te peça meças
No folgor dos gabinetes
Hás-de acabar às avessas
Barricado até aos dentes

És um produto de sala
Rasputim cá dos Cabrais
Estas sempre em traje de gala
A brincar aos carnavais

Nos anais do mundanismo
A nossa história recente
Falará com saudosismo
Dum grande Lugar-Tenente

São tudo favas-contadas
No país da verborreia
Uma brilhante carreira
Dá produto todo o ano

Digamos pra ser exacto
Assim se faz um canalha
Se a memória não me falha
Já te mandei prò Caetano









quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Um Campo Batido pela Brisa

                      Olympia de Édouart Manet

A tua nudez inquieta-me.

Há dias em que a tua nudez
é como um barco subitamente entrado pela barra.
Como um temporal. Ou como
certas palavras ainda não inventadas,
certas posições na guitarra
que o tocador não conhecia.

A tua nudez inquieta-me. Abre o meu corpo
para um lado misterioso e frágil.
Distende o meu corpo. Depois encurta-o e tira-lhe
contorno, peso. Destrói o meu corpo.
A tua nudez é uma violência
suave, um campo batido pela brisa
no mês de Janeiro quando sobem as flores
pelo ventre da terra fecundada.

Eu desgraço-me, escrevo, faço coisas
com o vocabulário da tua nudez.
Tenho «um pensamento despido»;
maturação; altas combustões.
De mão dada contigo entro por mim dentro
como em outros tempos na piscina
os leprosos cheios de esperança.
E às vezes sucede que a tua nudez é um foguete
que lanço com mão tremente desastrada
para rebentar e encher a minha carne
de transparência.

Sete dias ao longo da semana,
trinta dias enquanto dura um mês
eu ando corajoso e sem disfarce,
ilumindo, certo, harmonioso.
E outras vezes sucede que estou: inquieto.
Frágil.
Violentado.

Para que eu me construa de novo
a tua nudez bascula-me os alicerces.

Fernando Assis Pacheco

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Poema sobre a recusa

                    Pintura de Paula Rego da série "Mulher-cão"

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus
dedos

se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor

nem o interior da erva.
Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de

ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda

Maria Teresa Horta

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Desencontro

Não ter morada
habitar
como um beijo
entre os lábios
fingir-se ausente
e suspirar
(o meu corpo
não se reconhece na espera)
percorrer com um só gesto
o teu corpo
e beber toda a ternura
para refazer
o rosto em que desapareces
o abraço em que desobedeces.

Mia Couto

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

O que a vida quer da gente ...


O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem..

Guimarães Rosa
1908–1967

Imagem encontrada aqui e, por coincidência, com o mesmo pensamento de Guimarães Rosa.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

À tua espera


Estou diariamente à tua espera
como quem espera um astro pela noite

Defino-te em segredos
Revejo-te em memória

Invejo-te
Construo a tua boca sem palavras
Construo este silêncio em que me prendo.

João Rui de Sousa
1928

Imagem daqui

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Epitáfio

5 anos de saudade


Ainda correm lágrimas pelos
teus grisalhos, tristes cabelos,
na terra vã desintegrados,
em pequenas flores tornados.

Todos os dias estás viva,
na soledade pensativa,
ó simples alma grave e pura,
livre de qualquer sepultura!

E não sou mais do que a menina
que a tua antiga sorte ensina.
E caminhamos de mão dada
pelas praias da madrugada.

Cecília Meireles

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Soneto de Amor

"O Beijo", escultura em mármore de Auguste Rodin (1840-1917) 

Não me peças palavras, nem baladas,
Nem expressões, nem alma... Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem, desvairadas...
E que os meus flancos nus vibrem no enleio
Das tuas pernas ágeis e delgadas.

E em duas bocas uma língua... — unidos,
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.

Depois... — abre os teus olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus; não digas nada...
Deixa a Vida exprimir-se sem disfarce!

José Régio
1901-1969




sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

O Amor


O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente
Cala: parece esquecer

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pr'a saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar..

Fernando Pessoa

Imagem: Bertina Lopes "Como um grande Amor" retirada do blog ma-schamba no dia da morte da artista luso-moçambicana

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Foram Breves e Medonhas as Noites de Amor

foram breves e medonhas as noites de amor
e regressar do âmago delas esfiapava-lhe o corpo
habitado ainda por flutuantes mãos

estava nu
sem água e sem luz que lhe mostrasse como era
ou como poderia construir a perfeição

os dias foram-se sumindo cor de chumbo
na procura incessante doutra amizade
que lhe prolongasse a vida

e uma vez acordou
caminhou lentamente por cima da idade
tão longe quanto pôde
onde era possível inventar outra infância
que não lhe ferisse o coração

Al Berto

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A Mulher Mais Bonita do Mundo

‎estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram
flores novas na terra do jardim, quero dizer
que estás bonita.

entro na casa, entro no quarto, abro o armário,
abro uma gaveta, abro uma caixa onde está o teu fio
de ouro.

entre os dedos, seguro o teu fino fio de ouro, como
se tocasse a pele do teu pescoço.

há o céu, a casa, o quarto, e tu estás dentro de mim.

estás tão bonita hoje.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

estás dentro de algo que está dentro de todas as
coisas, a minha voz nomeia-te para descrever
a beleza.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

de encontro ao silêncio, dentro do mundo,
estás tão bonita é aquilo que quero dizer.

José Luís Peixoto

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Nocturnamente

Nocturnamente te construo
para que sejas palavra do meu corpo

Peito que em mim respira
olhar em que me despojo
na rouquidão da tua carne
me inicio
me anuncio
e me denuncio

Sabes agora para o que venho
e por isso me desconheces

Mia Couto

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

José Craveirinha

José João Craveirinha, escritor Moçambicano, faleceu há 9 anos.















Estamos sentados.
E nefelibatas bebemos coca-cola
nas públicas cadeiras da praça.

E
sobre as envenenadas acácias
andorinhas geometrizam o azul do céu
e despercebidos passarinhos africanos
cantam nos verdes braços vegetais
de um parque da cidade moçambicana
onde jovens discutem as pernas de Brigitte Bardot
e abúlicas mãos tamborilam
no tampo da mesa fúteis dedos.

Mas um grupo de estivadores
vem do cais vestindo
sarapilheiras
e passa a três metros e meio
das cómodas cadeiras da praça
enquanto
cocacolizados
odes cantam nos ramos os bilo-bilana
e na surdina das tímidas meias-palavras
e subentendidos silêncios
ansiosos todos esperamos
indolentes as flores
da nossa comum Primavera

José Craveirinha

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

A Despedida

Três modos de despedida
Tem o meu bem para mim:
- "Até logo"; "até à vista":
Ou "adeus" - É sempre assim.

"Adeus", é lindo, mas triste;
"Adeus" ... A Deus entregamos
Nossos destinos: partimos,
Mal sabendo se voltamos.

"Até logo", é já mais doce;
Tem distancia e ausência, é certo;
Mas não é nem ano e dia,
Nem tão-pouco algum deserto.

Vale mais "até à vista",
Do que "até logo" ou "adeus";
"À vista", lembra, voltando,
Meus olhos fitos nos teus.

Três modos de despedida
Tem, assim, o meu Amor;
Antes não tivesse tantos!
Nem um só... Fora melhor.

António Correia de Oliveira

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Negra

Gentes estranhas com seus olhos cheios doutros mundos
quiseram cantar teus encantos
para elas só de mistérios profundos,
de delírios e feitiçarias...
Teus encantos profundos de Africa.

Mas não puderam.
Em seus formais e rendilhados cantos,
ausentes de emoção e sinceridade,
quedas-te longínqua, inatingível,
virgem de contactos mais fundos.
E te mascararam de esfinge de ébano, amante sensual,
jarra etrusca, exotismo tropical,
demência, atracção, crueldade,
animalidade, magia...
e não sabemos quantas outras palavras vistosas e vazias.

Em seus formais cantos rendilhados
foste tudo, negra...
menos tu.

E ainda bem.
Ainda bem que nos deixaram a nós,
do mesmo sangue, mesmos nervos, carne, alma,
sofrimento,
a glória única e sentida de te cantar
com emoção verdadeira e radical,
a glória comovida de te cantar, toda amassada,
moldada, vazada nesta sílaba imensa e luminosa: MÃE

Noémia de Souza

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

À espera

Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
— tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

Nada me importa; mas tu enfim me importas.
Importa, por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.
Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
«Que me importa que batam à porta...»
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.

Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhãs
e lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.

Que me importa, agora que me importas,
que batam, se não és tu, à porta?

Fernando Santiago Mendes de Assis Pacheco ,jornalista, critico literário, tradutor e escritor português, nasceu em Coimbra a 1 de Fevereiro de 1937 e faleceu em Lisboa a 30 de Novembro de 1995.

Em destaque

orgasmo

fui ver o mar fez-se a mim fiz-me a ele as ondas desta vez tombaram de pé e espumaram de gozo  Bénèdicte Houart (no dia internacional do org...