Palavras ditas ...

Se eu gosto de poesia?
Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor... Acho que a poesia está contida nisso tudo."
Carlos Drumond de Andrade

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Espiral


No oculto do ventre,
o feto se explica como o Homem:
em si mesmo enrolado
para caber no que ainda vai ser.

Corpo ansiando ser barco,
água sonhando dormir,
colo em si mesmo encontrado.

Na espiral do feto,
o novelo do afecto
ensaia o seu primeiro infinito.

                                                                                                    Mia Couto in Tradutor de Chuvas
                                                                                                  

sexta-feira, 13 de abril de 2018

(do) beijo ...



Do beijo fica um sabor, 
do sabor uma lembrança, 
um vento leve, uma espuma. 

Do beijo fica um sereno 
olhar, o amor de coisas
minúsculas e humildes, 
um pássaro que vai e vem 
da nossa boca às palavras. 
Do beijo fica, suprema, 
a descoberta da morte. 
Um vento leve, uma espuma 
salgada à flor dos lábios.


Fernando Assis Pacheco

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Eu


medos. enformam-me medos
e tanto que finjo quando os olho e lhes digo: ó sonhos! ó maravilhas!…

medo? medo até de fugir.
como num filme ou num romance se foge
num azul, numa nuvem, em duas linhas
acreditando que tudo cabe num peito
(os medos cabem na mão).

e minto. e sonho. e busco a coragem que me culpa
num peito-feito de mentiras.
sorrisos escritos. falas doces. horizontes de luxo.
em rodapé: nuvens ínvias.

e sem medo.
são os meus sonhos, braçadas no meu mar.
aleluias nos meus dias.
a mágica antes da noite.

eu nunca sonho. isto é:
eu nunca sonho quando adormeço.
dizem que não nos lembramos dos sonhos que temos quando adormecidos
mas que sonhamos sempre. sempre.
o sono e o sonho dão as mãos, dizem,
são bons amigos e nunca se esquecem um do outro.

eu? eu nunca sonho.
eu lembrar-me-ia se os tivesse.
tenho tantos acordado!
e, acaso os tivesse, adormecido, porque é que não me lembraria?
porquê gritaria? porquê me revoltaria?

(eu disse: os meus sonhos são o medo.
um disfarce, uma roupa que visto,
agasalho, pintura,
um duplo que não existe)

: durante a noite, vão de vida,
- que dizem onírica, riquíssima, mas dela não me lembro de nada,
eu tremo.
choro.
até grito.
o meu corpo tem convulsões. grita.
acho que também chora
mas quando a manhã me acorda
bem procuro nos lençóis (mas nunca encontro)
marcas dos sonhos ou das lágrimas, um qualquer sémen de dor:
os gritos nocturnos não ecoam quando o dia nasce.

sonhos? bah…

eu não sonho: grito.
não sorrio: tremo, tremelico.

e durmo. dormito no medo de acordar.

depois? volta tudo. tudo.
o medo abriga-se, mau diurno, e reinicio-me no fantasiar.

a sonhar.
vidas.
sorrisos.
nuvens sem medos e gritos
e tão, tão bonito, cuidado, credível
como não acreditar?
«amanhã! amanhã é que é!...»

e acaba-se o chorar.
o tremer.
o longo dormitar.

os dias assim são longos.
maiores que as noites (delas nada recordo).
gritos, choros, tremores,
sei-os em segunda mão. eu?
eu durmo.
eu durmo.
e da noite nada sei ou quero saber
(eu durmo, eu durmo,
e tenho um truque para quando acordar.)

e, se me apetece chorar
se desperto
se acordo
se
lavo a cara e minto,
e
e
e

eu disse: enformam-me medos.

medos.
por isso aldrabo sonhos, minto, faço versos
e esmero-me a fantasiar.

Carlos Gil

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