Palavras ditas ...

Se eu gosto de poesia?
Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor... Acho que a poesia está contida nisso tudo."
Carlos Drumond de Andrade

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Ladainha dos póstumos natais




Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito

David Mourão-Ferreira

sábado, 20 de dezembro de 2014

Veste-me

Veste-me de mãos
fortes espessas macias


veste-me

com a tua voz
doce meiga quente
transbordante d'amor e doçura

tapa-me as feridas
os silêncios
e vazios

apaga os muros
sombras
e temores



veste-me
de beijos.


Fátima Guimarães

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Soneto (Sonhei-te)


Sonhei-te tantos anos! Tantos anos!
Eras o meu ideal de amor e de arte,
buscava-te a toda hora e em toda parte
nessa ânsia inexplicável dos insanos.

Enfim, vencida pelos desenganos,
como quem nada espera que lhe farte
a alma faminta, exausta de sonhar-te,
abandonei-me do destino aos danos.

Surges-me agora, em meio da jornada
da Vida: vens do Inferno ou vens da Altura?
- Não sei: mas de ti fujo, apavorada!

E, em lágrimas, minha alma conjetura:
uma felicidade retardada
quase sempre se torna desventura.

Gilka Machado


segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

As Amoras - O Outro Nome da Terra

O meu país sabe as amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.

Eugénio de Andrade

terça-feira, 18 de novembro de 2014

A um Jovem Poeta


Procura a rosa.
Onde ela estiver
estás tu fora
de ti. Procura-a em prosa, pode ser

que em prosa ela floresça
ainda, sob tanta
metáfora; pode ser, e que quando
nela te vires te reconheças

como diante de uma infância
inicial não embaciada
de nenhuma palavra
e nenhuma lembrança.

Talvez possas então
escrever sem porquê,
evidência de novo da Razão
e passagem para o que não se vê.


Manuel António Pina,  nasceu no Sabugal a 18 de Novembro de 1943. Licenciou-se em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Jornalista e escritor, com especial incidência na poesia e na literatura infanto-juvenil., tem também diversas obras de ficção, crónica e teatro.

É Comendador da Ordem do Infante D. Henrique e, para além dos vários prémios pela literatura infanto-juvenil e crónica, recebeu também o Prémio de Poesia da Casa da Imprensa, Prémio Gulbenkian, Prémio da Crítica, da Secção Portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores e o Prémio Camões.



segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Tabacaria - Alvaro de Campos e Mário Viegas


Alvaro de Campos dito por Mário Viegas

O grande Mário Viegas faria hoje 66 anos.
Grande em tudo que fez - encenador, actor e declamador - deixou-nos cedo demais. 
Foi distinguido com vários prémios, nacionais e estrangeiros, entre eles  o Prémio Garrett (1987) da Secretaria de Estado da Cultura.
Em 1993 recebeu a Medalha de Mérito do Município de Santarém  e em 1994 o título de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

O mar dos meus olhos


                                                 Sophia diz que a sua poesia lhe acontece ...


Nasceu há 95 anos e é uma destas MULHERES


Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma
E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes

Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes...
e calma

Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Soneto de Devoção

Essa mulher que se arremessa, fria
E lúbrica aos meus braços, e nos seios
Me arrebata e me beija e balbucia
Versos, votos de amor e nomes feios.

Essa mulher, flor de melancolia
Que se ri dos meus pálidos receios
A única entre todas a quem dei
Os carinhos que nunca a outra daria.

Essa mulher que a cada amor proclama
A miséria e a grandeza de quem ama
E guarda a marca dos meus dentes nela.

Essa mulher é um mundo! — uma cadela
Talvez... — mas na moldura de uma cama
Nunca mulher nenhuma foi tão bela!

         Vinicius de Moraes


quarta-feira, 29 de outubro de 2014

As Linhas da Mão


Deste canto de treva, esperas, surdo,
enquanto o céu corrói teu corpo escasso.
E sentes de ti mesmo o ofego gasto
pelo escoar do dia, o jogo amargo
de voltar das manhãs cheio de escuro.

Deste lado solar, desprezas, mudo,
o que sabes virá porque marcado
na morte que vais sendo, o sonho alçado
ao espaço que passa, este amor breve,
pois é feito de tempo e o tempo cede.

Eis tuas mãos. As suas linhas, cego,
o solitário sol, o rio vazio,
o saibro sob os pés, o choro inútil
e tudo o que feriste nos descrevem,
num rogo de beleza, sujo e puro.

Do centro crepuscular, dali tens tudo.

Alberto da Costa e Silva



Pelo conjunto de sua obra, foi atribuído a Alberto da Costa e Silva o Prémio Camões 2014.
O anúncio  foi feito oficialmente a 30 de Maio deste ano e a cerimónia de entrega do prémio acontecerá esta noite, no Rio de Janeiro, no Brasil.
O poeta venceu também em 1998 o Prémio Jabuti, principal galardão da literatura brasileira.

Alberto da Costa e Silva, enquanto ensaísta e historiador, é também reconhecido como grande conhecedor da cultura africana, tendo escrito diversos livros sobre o continente.


terça-feira, 28 de outubro de 2014


Abriste uma porta
Para um quarto fechado,
Sem janela e sem depois.
Mostraste-me a mim
Aquela que eu era,
Que eu de mim não sabia, 
E me procurava.
Volvidos que são
Os anos do tempo,
Continua fechado, suspenso,
O breve momento da espera.

Theo Leiroz Biel

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Luis de Camões

Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos...
E para mais me espantar...
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.

Luís de Camões

Lisboa - Venerando Camões


Esta postagem, foi copiada do mural de Gonçalo Capitão, maravilhoso fotógrafo, autor desta fotografia.
Os versos são "comentário" de Maria Rodrigues
Tinha que publicar aqui. Obrigada a ambos.

domingo, 28 de setembro de 2014

Neil Young - Harvest Moon


Hoje, gostaria tanto de dançar novamente este som  ...



Come a little bit closer
Hear what I have to say
Just like children sleepin'
We could dream this night away

But there's a full moon risin'
Let's go dancin' in the light
We know where the music's playin'
Let's go out and feel the night

Because I'm still in love with you
I want to see you dance again
Because I'm still in love with you
On this harvest moon

When we were strangers
I watched you from afar
When we were lovers
I loved you with all my heart

But now it's gettin' late
And the moon is climbin' high
I want to celebrate
See it shinin' in your eye

Because I'm still in love with you
I want to see you dance again
Because I'm still in love with you
On this harvest moon

Explicação do Tempo


De todas as formas de medir o Tempo
Só a música se explica aos homens
O coração é dança íntima do corpo
O assobio é uma morte que se aceita
E cantar é ser eterno pela boca

(à noite faltam todos os tambores)

Nuno Camarneiro


               Kiki Lima

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Claridade dada pelo tempo - V


Eu sei
que há um lugar por descobrir
um lugar tenebroso e cantante
como uma ponte de velhos manequins

o teu corpo
dois seios despedaçados
e o vento    só o vento
soprado através
dos teus cabelos

Mário Henrique Leiria



Imagem daqui

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Claridade dada pelo tempo - IV



















Lembrança de uma noite - Luigi Russolo

Simples como é
a claridade é a coisa
mais difícil de encontrar
talvez porque a distância que nos
separa longa muito longa
e nítida
seja a torre de chumbo do nosso
próprio isolamento
talvez porque sentir
o aparecimento da madrugada
seja a origem do desespero
sombra    trópico    lâmina
entre nós dois

        ouve o que te digo
não esqueças os meus lábios
mesmo quando desfeitos
e a claridade
essa não a procures    não    nunca
deixa-a ir comigo
até ao esgotamento do meu sangue
até ao limite
do meu corpo em carne viva

Mário Henrique Leiria

Imagem daqui

domingo, 14 de setembro de 2014

Claridade dada pelo tempo - III















Viver com a crueldade
da criança que
tira os olhos ao pássaro
.
um desconhecido
movendo-se constantemente
no deserto
em que cada pegada deixa
bem marcada na areia
a imagem
dessa outra existência
em que a morte e a memória
ainda nada significam

mais alto

muito mais alto talvez
que a claridade
do voo das aves que
partem para o desconhecido

o próprio corpo nada mais é
do que a sombra
bem simples por sinal
em que,
por erro nosso ou dos outros,
já não existe
a persistência do que
foi perdido

e as mãos
as mãos que sentimos
bem presas    seguras    aptas
essas
todos sabemos
que podem ainda cada vez mais
esmagar com cuidado
com extremo cuidado
dilacerar suavemente

nos olhos
está o amor

Mário Henrique Leiria

sábado, 13 de setembro de 2014

Claridade dada pelo tempo - II
















Deixa que eu quebre tudo que tenho e que terei
tudo o que é de todos e que só a mim pertence
deixa-me quebrar o cavalo que me deste
na noite do nosso primeiro encontro
deixa-me partir a bola o cão o espaço
deixa-me quebrar a minha casa e a minha cama
                   a minha única cama
não quero que me contem a aventura
nem que me dêem almofadas
não quero que me ofereçam sombras
só por mim construídas e logo abandonadas
nem sequer esquinas de ruas
não quero a vida
sei claramente que a não quero
a não ser que ela esteja partida quebrada
quebrada por mim e por ti
                 e a minha infância
essa dou-ta
inteira muito longa e cruel
deixa que dela me fique apenas
essa crueldade
e que nela só eu siga
ignorando o que me deste
e que
martelo ou pedra
eu continue partindo quebrando
esfacelando dilacerando
o teu corpo que já não está ao meu alcance
deixa-me ser anatomicamente autêntico
sem erro
sangrando
        perdido para sempre

Mário Henrique Leiria

Imagem daqui

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Claridade dada pelo tempo - I














Deixa-me sentar numa nuvem
a mais alta
e dar pontapés na Lua
que era como eu devia ter vivido
a vida toda
dar pontapés
até sentir um tal cansaço nas pernas
que elas pudessem voar
mas não é possível
que tenho tonturas e quando
olho para baixo
vejo sempre planícies muito brancas
intermináveis
povoadas por uma enorme quantidade
de sombras
dá-me um cão ou uma bola
ou qualquer coisa que eu possa olhar
dá-me os teus braços exaustivamente
longos
dá-me o sono que me pediste uma vez
e que transformaste apenas para
teu prazer
nos nossos encontros e nos nossos
dias perdidos e achados logo em
seguida
depois de terem passado
por uma ponte feita por nós dois
em qualquer sítio me serve
encontrar o teu cabelo
em qualquer lugar me bastam
os teus olhos
porque
sentado numa nuvem
na lua
ou em qualquer precipício
eu sei
que as minhas pernas
feitas pássaros
voam para ti
e as tonturas que a planície me dá
são feitas por nós
de propósito
para irritar aqueles que não sabem
subir e descer as montanhas geladas
são feitas por nós
para nunca nos esquecermos
da beleza dum corpo
cintilando fulgurantemente
para nunca nos esquecermos
do abraço que nos foi dado
por um braço desconhecido
         nós sabemos
              tu e eu
que depois de tudo
apenas existem os nossos corpos
rutilantes
até se perderem no
limite do olhar
dá-me um cigarro
mesmo que seja só um
já me basta
desde que seja dado por ti
mas não me leves
não me tires
as tonturas que eu teria
que eu terei
sempre que penso cá de cima
duma altura vertiginosa
onde a própria águia
nada mais é que um minúsculo
objecto perdido
onde a nuvem
mais alta de todas
se agasalha como um cão de caça
leva-me a recordação
apenas a recordação
da vida martelada
que em mim tem ficado
como herança dada há mil e
duzentos anos

deixa que eu fique
muito afastado
silencioso
e único
no alto daquela nuvem
que escolhi
ainda antes de existir

Mário Henrique Leiria

imagem daqui

domingo, 24 de agosto de 2014

Eduardo White - Não faz mal

Eduardo Luís de Menezes Costley-White, poeta moçambicano, nasceu em Quelimane a 21 de Novembro de 1963 e faleceu em Maputo a 24 de Agosto de 2014.
Recebeu vários prémios entre eles, o Prémio Nacional de Poesia em 1992,  o Prémio José Craveirinha em 2004 e em 2013 o Prémio Literário Glória de Sant’Anna.




Voar é uma dádiva da poesia.
Um verso arde na brancura aérea do papel,
toma balanço,
não resiste.

Solta-se-lhe
o animal alado.
Voa sobre as casas,
sobre as ruas,
sobre os homens que passam,
procura um pássaro
para acasalar.

Sílaba a sílaba
o verso voa.

E se o procurarmos? Que não se desespere, pois nunca o iremos encontrar. Algum sentimento o terá deixado pousar, partido com ele. Estará o verso connosco? Provavelmente apenas a parte que nos coube. Aquietemo-nos. Amainemo-nos esse desejo de o prendermos.

Não é justo um pássaro
onde ele não pode voar.


Eduardo White

sábado, 9 de agosto de 2014

Na Morte de Urbano Tavares Rodrigues


No dia 9 de Agosto de 2013
houve uma vaga de calor. De certo modo
ele morreu dentro de um seu romance-
Não foi notícia de abertura. Os telejornais
mostraram mulheres gordas em Carcavelos
e um sujeito pequenino (parece que ministro)
a falar de “cultura política nova.”
Mais tarde este dia será lembrado
como a data em que morreu
Urbano Tavares Rodrigues.

Manuel Alegre

terça-feira, 29 de julho de 2014

Mangas verdes com sal

Mangas verdes com sal
sabor longínquo, sabor acre
da infância a canivete repartida
no largo semicírculo da amizade.
Sabor lento, alegria reconstituída
no instante desprevenido,
na maré-baixa,
no minuto da suprema humilhação.
Sabor insinuante que retorna devagar
ao palato amargo,
à boca ardida,
à crista do tempo,
ao meio da vida.

 Rui Knopfli

quinta-feira, 10 de julho de 2014

" ... A vida pulsando, indiferente ao bem e ao mal. O coração batendo, o sangue circulando, o corpo vivo. E no entanto a realidade vem sempre outra vez ter connosco."

 Teolinda Gersão
(PASSAGENS, Sextante Editora, 2014, p. 138)

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Gift


You tell me that silence
is nearer to peace than poems
but if for my gift
I brought you silence
(for I know silence)
you would say
This is not silence
this is another poem
and you would hand it back to me.

Leonard Cohen


sábado, 5 de julho de 2014

Diz o Meu Nome

No dia do 59º aniversário de Mia Couto, deixo um poema do seu primeiro livro Raiz de Orvalho, publicado em Maputo pela Associação de Escritores Moçambicanos (AEMO). Em 1999, a Editorial Caminho (que publica as obras de Mia Couto em Portugal) relançou Raiz de Orvalho e outros poemas.



Diz o meu nome 
pronuncia-o 
como se as sílabas te queimassem 
                       os lábios 
sopra-o com a suavidade 
de uma confidência 
para que o escuro apeteça 
para que se desatem os teus cabelos 
para que aconteça 

Porque eu cresço para ti 
sou eu dentro de ti 
que bebe a última gota 
e te conduzo a um lugar 
sem tempo nem contorno 

Porque apenas para os teus olhos 
sou gesto e cor 
e dentro de ti 
me recolho ferido 
exausto dos combates 
em que a mim próprio me venci 

Porque a minha mão infatigável 
procura o interior e o avesso 
da aparência 
porque o tempo em que vivo 
morre de ser ontem 
e é urgente inventar 
outra maneira de navegar 
outro rumo outro pulsar 
para dar esperança aos portos 
que aguardam pensativos 

No húmido centro da noite 
diz o meu nome 
como se eu te fosse estranho 
como se fosse intruso 
para que eu mesmo me desconheça 
e me sobressalte 
quando suavemente 
pronunciares o meu nome 

Mia Couto

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Sophia de Mello Breyner Andresen

A trasladação do corpo de Sophia para o Panteão Nacional realiza-se hoje, no 10º aniversário da sua morte.


Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.

Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Centenário do nascimento do poeta Joaquim Namorado - Sonambulismo


Professor e poeta, Joaquim Namorado foi um dos iniciadores e teóricos do movimento neo-realista em Portugal.  Nasceu em Alter do Chão, a 30 de Junho de 1914.

Foi militante do Partido Comunista Português desde os anos 30 do século passado e apesar da sua licenciatura em Ciências Matemáticas pela Universidade de Coimbra só após o 25 de Abril de 1974, ingressou no quadro de professores da secção de Matemática da Faculdade de Ciências e Tecnologia daquela mesma universidade.


Tombam os dias inúteis: 
amanhece, é tarde, anoitece. 
Mas a nós que nos importa 
ser manhã, meio dia ou noite?!... 
Sonâmbula a vida decorre 
- nas ruas, a paz larvar dos grandes cemitérios; 
dentro de nós, cada um 
apodrece. 
Enchem-se de títulos vibrantes os jornais 
- mas tudo é tão longe... 
Passam homens por homens e não se conhecem: 
Boa tarde! Bom dia! 
Cada um fechado nas suas fronteiras, 
os gestos vazios, 
a vida sem sentido 
- sonambulismo apenas. 

Acorda! 
Ainda que seja só para o sobressalto, 
que as ilusões do sonho se desfaçam 
e as esperanças morram todas nessa hora! 

Acorda! 
ainda que o caminho a percorrer te espante 
e o peso da obra a realizar te esmague! 

Ainda que acordar seja 
morrer depois aos poucos, em cada momento, 
dolorosamente 

Joaquim Namorado

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Foram Breves e Medonhas as Noites de Amor



foram breves e medonhas as noites de amor
e regressar do âmago delas esfiapava-lhe o corpo
habitado ainda por flutuantes mãos

estava nu
sem água e sem luz que lhe mostrasse como era
ou como poderia construir a perfeição

os dias foram-se sumindo cor de chumbo
na procura incessante doutra amizade
que lhe prolongasse a vida

e uma vez acordou
caminhou lentamente por cima da idade
tão longe quanto pôde
onde era possível inventar outra infância
que não lhe ferisse o coração

Al Berto

quarta-feira, 25 de junho de 2014

No 39º aniversário da independência de Moçambique - Moçambicanto I -

Para o país que vi nascer e trago no coração, um só desejo, uma só palavra 
 - PAZ -



céleres as águas
zambezeiam pela memória
das almadias do silêncio

nem o zumbido da cigarra
me entontece

nem o troar do tambor
me ensurdece

as vozes que são
sulcos das nossas esperanças

oh pátria
moçambiquero-te
neste alumbramento
e amar-te
devo-o à carne e ao nervo
deglutidos em revolta.

Gulamo Khan


segunda-feira, 9 de junho de 2014

O Amor, Meu Amor


Nosso amor é impuro 
como impura é a luz e a água 
e tudo quanto nasce 
e vive além do tempo.
Minhas pernas são água, 
as tuas são luz 
e dão a volta ao universo 
quando se enlaçam 
até se tornarem deserto e escuro. 
E eu sofro de te abraçar 
depois de te abraçar para não sofrer.
E toco-te 
para deixares de ter corpo 
e o meu corpo nasce 
quando se extingue no teu.
E respiro em ti 
para me sufocar 
e espreito em tua claridade 
para me cegar, 
meu Sol vertido em Lua, 
minha noite alvorecida.
Tu me bebes 
e eu me converto na tua sede. 
Meus lábios mordem, 
meus dentes beijam, 
minha pele te veste 
e ficas ainda mais despida.
Pudesse eu ser tu 
E em tua saudade ser a minha própria espera.
Mas eu deito-me em teu leito 
Quando apenas queria dormir em ti.
E sonho-te 
Quando ansiava ser um sonho teu.
E levito, voo de semente, 
para em mim mesmo te plantar 
menos que flor: simples perfume, 
lembrança de pétala sem chão onde tombar.
Teus olhos inundando os meus 
e a minha vida, já sem leito, 
vai galgando margens 
até tudo ser mar. 
Esse mar que só há depois do mar.

Mia Couto

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Amo-te todos os dias ...
















Eu quero olhar-te nos olhos,
E ver-te afastar delicadamente o cabelo da cara
Enquanto encostas a cabeça à ombreira da janela da sala,
E agarrar as tuas mãos febris
Com as minhas mãos geladas
E dizer-te que as nossas mãos
São asas com que podemos voar
Para lá da pequenez desta prisão crepuscular,
E mergulhar na magnitude do mistério.
E ouvir-te dizer que voar é impossível
E dizer-te que entre nós não há impossíveis,
E ver-te procurar a serenidade num cigarro
E esconder-te o isqueiro debaixo da manta
Cor-de-fogo que cobre o sofá velho,
E ver-te ir à última gaveta do móvel de carvalho
E acender o teu cigarro com um dos infindáveis
Isqueiros que lá guardas,
E ir à última gaveta da tua alma
E de lá arrancar o teu enigmático sorriso.
E fingir que não percebo que enquanto nos beijamos
Me roubas, maquiavelicamente, o comando da televisão,
E falar-te acerca da rapariga das tranças ruivas
Que aparece, na magia dos meus sonhos,
Sentada no banco do jardim da lua,
E sorrir aos teus ciúmes de alguém que não existe,
E fingir que estou a tossir mais que aflito
E ver-te esmagar bruscamente o cigarro contra o cinzeiro
E refugiares-te no chá de cereja,
E ouvir-te elogiar as chávenas rubro incandescente,
Que trouxeste da viagem ao México,
Só porque sabes que não gosto daquelas chávenas,
E ver-te despir para tomar banho
E tocar-te como quem lê um poema em braille,
Como se o teu corpo fosse, simultaneamente,
Uma encruzilhada onde me perco
E um mapa onde me volto a encontrar,
E reter-te por séculos nos meus braços,
E fugir quando alcanças o chuveiro ameaçador,
E esperar ansiosamente que termines o teu banho
E beijar o calor da tua pele húmida quando regressas,
E sorrir ao olhar falsamente ressentido
Que lanças desde o sofá onde estás deitada
Com o cabelo molhado,
E ver-te ceder ao peso das pálpebras
Quando as horas pesam séculos sobre os olhos,
E adormecer junto a mim,
E ser percorrido pela profunda paz
Que emerge da perfeição daquele momento,
Perfeição que, felizmente, não tens:
Gosto de ti, não apesar dos teus defeitos,
Mas com os teus defeitos. Todos.
E tocar-te uma vez mais,
Mas querer também deixar-te dormir,
E acordar antes de ti,
E ir à padaria buscar pasteis de nata
E ver-te deliciar com eles
Sem te importares de semear a cama com migalhas
Enquanto eu me delicio com o teu sorriso,
E ver-te beber sumo de laranja
Segurando o copo com as duas mãos,
E pressentir que te conheço há sete vidas
E que afinal tudo isto faz sentido
Porque tu existes,
E perceber a sorte que tive em te encontrar
No meio de seis biliões de seres humanos.
Eu quero olhar-te nos olhos,
E…

Gonçalo Nuno Martins

Imagem daqui

quarta-feira, 14 de maio de 2014

um anjo erra (o amor confuso)


Um anjo erra
nos teus olhos diurnos

humedecido do véu
(ao fundo, a íris entardece)
seguiu de cor a revoada das pombas

místico
um arroubo ascende a prumo
do plano em que me fitas

cisnes desaguam
do teu olhar em fio
e vogam ao redor, pelo estuário da sala

ao sol-poente
os vitrais das janelas
ardem na catedral assim erguida

colocamos um sonho
em cada nicho

e no círculo formado pelas nossas bocas
subentende-se com verve
a língua.

Sebastião Alba


Imagem daqui, de Raul Ferreira Rocha

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Como se te perdesse


Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro
Um arco-íris de ar em águas profundas.
Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.
Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.

Descansa.
O Homem já se fez
O escuro cego raivoso animal
Que pretendias.

Hilda Hilst

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Lembrando ...


Morte
Término da vida, cessação
De funções orgânicas vitais.
Um nada, vazio, escuridão,
Sumiço d’amigos e rivais.
Desaparecimento do ser.
A negação do querido ente.
Eliminação do pretender
Ter existência permanente.

Expedito Ramalho de Alencar

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Primavera de Almada Negreiros


José Sobral de Almada Negreiros nasceu em S. Tomé e Príncipe a 7 de Abril de 1893.
Faz parte da 1ª geração de modernistas portugueses dedicado à pintura, desenho e escrita .



O sol vae esmolando os campos com bôdos de oiro.

A pastorinha aquecida vae de corrida a mendigar a sombra do chorão corcunda, poeta romantico que tem paixão p'la fonte.

Espreita os campos, e os campos despovoados dão-lhe licença para ficar núa. Que leves arrepios ao refrescar-se nas aguas! Depois foi de vez, meteu-se no tanque e foi espojar-se na relva, a seccar-se ao sol. Mas o vento que vinha de lá das Azenhas-do-Mar, trazia peccados
comsigo. Sentiu desejos de dar um beijo no filho do Senhor Morgado. E lembrou-se logo do beijo da horta no dia da feira. Fechou os olhos a cegar-se do mau pensamento, mas foi lembrar-se do
proprio Senhor Morgado á meia noite ao entrar na adega. Abanou a fronte para lhe fugir o peccado, mas foi dar comsigo na sachristia a deixar o Senhor Prior beijar-lhe a mão, e depois a testa... porque Deus é bom e perdôa tudo... e depois as faces e depois a bocca e depois... fugiu... Não devia ter fugido... E agora o moleiro, lá no arraial, bailando com ella e sem querer, coitado, foi ter ao moinho ainda a bailar com ella. E lembra-se ainda - sentada na grande arca,
e mãos alheias a desapertarem-lhe as ligas e o corpête, emquanto ouve a historia triste do moinho com cincoenta malfeitores... Quer lembrar-se mais, que seja peccado! quer mais recordações do moinho, mas não encontra mais.

Ah! e o boieiro quando, a guiar a junta, topou com ella e lhe perguntou se vira por acaso uma borboleta branca a voar a muito, uma borboleta muito bonita! Que não, que não tinha visto; mas o boieiro desconfiado foi procurando sempre, e até mesmo por debaixo dos vestidos.

Como desejava poder ir com todos!

Não sabe o que sente dentro de si que a importuna de bem estar.

Teria a borbolêta branca fugido para dentro d'ella?



Almada Negreiros



sexta-feira, 4 de abril de 2014

Salgueiro Maia

No 22º aniversário da partida de Salgueiro Maia



Ficaste na pureza inicial 
do gesto que liberta e se desprende.
Havia em ti o símbolo e o sinal
havia em ti o herói que não se rende.

Outros jogaram o jogo viciado
para ti nem poder nem sua regra.
Conquistador do sonho inconquistado
havia em ti o herói que não se integra.

Por isso ficarás como quem vem
dar outro rosto ao rosto da cidade.
Diz-se o teu nome e sais de Santarém
trazendo a espada e a flor da liberdade.


Manuel Alegre

quinta-feira, 20 de março de 2014

Poema


Alice Vieira nasceu em Lisboa no ano de 1943. Hoje comemora 71 anos.
É jornalista e escritora, considerada uma das mais importantes na área da literatura infanto-juvenil, sendo que não é apenas autora deste género de prosa.




Envelhecemos com as palavras ou elas
connosco
digo amor e já não corro precipitadamente
pela escadaria de pedra com enormes
anjos de facas sobre as nossas cabeças
que me levava a ti nas manhãs em que o desejo
(a que evidentemente dávamos
outro nome mais brando ) 
e nos rebentava o corpo como o pólen
das árvores na primavera

e ainda não sabíamos sequer
que transportávamos em nós
a doença incurável das noites que não iriam ser as que esperávamos

já não sigo no teu corpo os sulcos
largados pelos meus dedos na hora apressada do regresso a casa
nem abafo na amurada de todas as partidas
o gesto com que não soube prender a tua fuga

digo amor e estão muito longe
as maneiras subtis de te levar escondido
entre cadernos e camélias e dilacerados sorrisos 
de fim de festa 

pior do que isso:

nem sequer preciso de dizer amor
para que ele se desfaça nos terrenos baldios
do meu sangue onde os teus passos
durante tantos anos
o procuraram

-- e ilumine as horas em que o eco da tua voz
traz consigo as espadas que os anjos de pedra
então nos apontavam"

Alice Vieira

domingo, 16 de março de 2014

O Livro dos Amantes




Natália de Oliveira Correia morreu em Lisboa há 21 anos


I
Glorifiquei-te no eterno. 
Eterno dentro de mim 
fora de mim perecível. 
Para que desses um sentido 
a uma sede indefinível. 

Para que desses um nome 
à exactidão do instante 
do fruto que cai na terra 
sempre perpendicular 
à humidade onde fica. 

E o que acontece durante 
na rapidez da descida 
é a explicação da vida. 

II 

Harmonioso vulto que em mim se dilui. 
Tu és o poema 
e és a origem donde ele flui. 
Intuito de ter. Intuito de amor 
não compreendido. 
Fica assim amor. Fica assim intuito. 
Prometido. 

III 

Príncipe secreto da aventura 
em meus olhos um dia começada e finita. 
Onda de amargura numa água tranquila. 
Flor insegura enlaçada no vento que a suporta. 
Pássaro esquivo em meus ombros de aragem 
reacendendo em cadência e em passagem 
a lua que trazia e que apagou. 

IV 

Dá-me a tua mão por cima das horas. 
Quero-te conciso. 
Adão depois do paraíso 
errando mais nítido à distância 
onde te exalto porque te demoras. 


Toma o meu corpo transparente 
no que ultrapassa tua exigência taciturna 
Dou-me arrepiando em tua face 
uma aragem nocturna. 

Vem contemplar nos meus olhos de vidente 
a morte que procuras 
nos braços que te possuem para além de ter-te. 

Toma-me nesta pureza com ângulos de tragédia. 
Fica naquele gosto a sangue 
que tem por vezes a boca da inocência. 

VI 

Aumentámos a vida com palavras 
água a correr num fundo tão vazio. 
As vidas são histórias aumentadas. 
Há que ser rio. 

Passámos tanta vez naquela estrada 
talvez a curva onde se ilude o mundo. 
O amor é ser-se dono e não ter nada. 
Mas pede tudo. 

VII 

Tu pedes-me a noção de ser concreta 
num sorriso num gesto no que abstrai 
a minha exactidão em estar repleta 
do que mais fica quando de mim vai. 

Tu pedes-me uma parcela de certeza 
um desmentido do meu ser virtual 
livre no resultado de pureza 
da soma do meu bem e do meu mal. 

Deixa-me assim ficar. E tu comigo 
sem tempo na viagem de entender 
o que persigo quando te persigo. 

Deixa-me assim ficar no que consente 
a minha alma no gosto de reter-te 
essencial. Onde quer que te invente. 

VIII 

Eis-me sem explicações 
crucificada em amor: 
a boca o fruto e o sabor. 

IX 

Pusemos tanto azul nessa distância 
ancorada em incerta claridade 
e ficamos nas paredes do vento 
a escorrer para tudo o que ele invade. 

Pusemos tantas flores nas horas breves 
que secam folhas nas árvores dos dedos. 
E ficámos cingidos nas estátuas 
a morder-nos na carne dum segredo. 

Natália Correia, in "Poemas" 1955

quarta-feira, 12 de março de 2014

Ya eres mía ... Soneto LXXXI


Ya eres mía. Reposa con tu sueño en mi sueño.
Amor, dolor, trabajos, deben dormir ahora.
Gira la noche sobre sus invisibles ruedas
Y junto a mí eres pura como el ámbar dormido.

Ninguna más, amor, dormirá con mis sueños.
Irás, iremos juntos por las aguas del tiempo.
Ninguna viajará por la sombra conmigo,
Sólo tú, siempreviva, siempre sol, siempre luna.

Ya tus manos abrieron los puños delicados
Y dejaron caer suaves signos sin rumbo,
Tus ojos se cerraron como dos alas grises,

Mientras yo sigo el agua que llevas y me lleva:
La noche, el mundo, el viento devanan su destino,
Y ya no soy sin ti sino sólo tu sueño.

Pablo Neruda

Imagem de origem desconhecida

terça-feira, 11 de março de 2014

Alheamento


Meu corpo estiraçado, lânguido, ao logo do leito. 

O cigarro vago azulando os meus dedos. 

O rádio... a música... 

A tua presença que esvoaça 
em torno do cigarro, do ar, da música... 

Ausência!, minha doce fuga! 

Estranha coisa esta, a poesia, 
que vai entornando mágoa nas horas 
como um orvalho de lágrimas, escorrendo dos vidros 
duma janela, 

numa tarde vaga, vaga... 

Fernando Namora

Imagem copiada aqui

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa.
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... -
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar....
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
......................................................
......................................................
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Mário de Sá-Carneiro

Imagem copiada daqui 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Lê , são estes os nomes das coisas que deixaste


Lê , são estes os nomes das coisas que
deixaste – eu, livros, o teu perfume
espalhado pelo quarto; sonhos pela
metade e dor em dobro, beijos por
todo o corpo como cortes profundos
que nunca vão sarar; e livros, saudade,
a chave de uma casa que nunca foi a
nossa, um roupão de flanela azul que
tenho vestido enquanto faço esta lista:
livros, risos que não consigo arrumar,
e raiva – um vaso de orquídeas que
amavas tanto sem eu saber porquê e
que talvez por isso não voltei a regar; e
livros, a cama desfeita por tantos dias,
uma carta sobre a tua almofada e tanto
desgosto, tanta solidão; e numa gaveta
dois bilhetes para um filme de amor que
não viste comigo, e mais livros, e também
uma camisa desbotada com que durmo
de noite para estar mais perto de ti; e, por
todo o lado, livros, tantos livros, tantas
palavras que nunca me disseste antes da
carta que escreveste nessa manhã, e eu,
eu que ainda acredito que vais voltar, que
voltas, mesmo que seja só pelos teus livros.

Maria do Rosário Pedreira

domingo, 26 de janeiro de 2014

...aqui e agora ...leio Nuno Júdice e ...





















O que tenho para te dar? Uma gramática de sentimentos,
verbos sem o complemento de uma vida, os substantivos
mais pobres de um vocabulário íntimo — o amor, o desejo,
a ausência. Que frase construiremos com tão pouco? A
que léxico da paciênc...ia iremos roubar o que nos falta?
Então, ofereço-te uma outra casa. As paredes têm a
consistência do verso; o tecto, o peso de uma estrofe.
Abro-te as suas portas; e o sol entra pela janela de
uma sílaba, com o seu logo vocálico, como se uma
palavra pudesse aquecer o frio que te envolve.
E pergunto-te: que outras palavras queres? A música
sonora de um ócio? O espesso manto com que o veludo
se escreve? O fundo luminoso do azul? Poderia dar-te
todas as palavras na caixa do poema; ou emprestar-te
o canto efémero em que se escondem do mundo.
Mas não é isso que me pedes. E a vida que pulsa
por entre advérbios e adjectivos esfuma-se depressa,
quando procuramos seguir a linha do verso, O que fica?,
perguntas-me. Um encontro no canto da memória. Risos,
lágrimas, o terno murmúrio da noite. Nada, e tudo.

Nuno Júdice

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

os olhos


se um gesto me definisse seria o de te afastar o cabelo para te ver melhor o rosto que me enche de bravura

e só te vejo pelos meus olhos por serem os que te vêem mais bela
por isso os escolho sempre
tenho os olhos feitos à medida da tua cara
e só tenho olhos para ti
quando não estás sou invisível e quase invisual
a visão não me serve de nada
vejo mas sem cor e é pior que a preto e branco
é desfocado
é esbatido
e sem chama
e sem cheiro
contigo cheira bem
sabe bem
ouve bem o que digo porque é sincero  
     porque se não fosse todo eu era falso
cada falso que há aí merecia cadeia ou morte
mas com os teus braços finos a fazer as vezes da corda que me serpenteia o pescoço para me matar de felicidade

e só te quero a ti
e só te vejo a ti como a última noite do Verão mais quente
com o céu mais estrelado
com a lua mais cúmplice
com os gestos mais carinhosos
e tiro-te o cabelo da frente com a ajuda da minha mão direita que só existe para isso
e vou para te beijar mas não o faço
hesito porque os meus olhos pediram-me que os deixasse olhar para ti mais uma vez
e eu deixo  
     para eles não chorarem muito

João Negreiros

Imagem de José Leão

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