Palavras ditas ...

Se eu gosto de poesia?
Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor... Acho que a poesia está contida nisso tudo."
Carlos Drumond de Andrade

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Soneto

Lábios que encontram outros lábios
num meio de caminho, como peregrinos
interrompendo a devoção, nem pobres
nem sábios numa embriaguez sem vinho
que silêncio os entontece quando
de súbito se tocam e, cegos ainda,
procuram a saída que o olhar esquece
num murmúrio de vagos segredos?
É de tarde, na melancolia turva
dos poentes, ouvindo um tocar de sinos
escorrer sob o azul dos céus quentes,
que essa imagem desce de Agosto, ou
Setembro, e se enrola sem desgosto
no chão obscuro desse amor que lembro.

Nuno Júdice

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Aparição Amorosa

Doce fantasma, por que me visitas
como em outros tempos nossos corpos se visitavam?
Tua transparência roça-me a pele, convida
a refazermos carícias impraticáveis: ninguém nunca
um beijo recebeu de rosto consumido.
Mas insistes, doçura. Ouço-te a voz,
mesma voz, mesmo timbre,
mesmas leves sílabas,
e aquele mesmo longo arquejo
em que te esvaías de prazer,
e nosso final descanso de camurça.

Então, convicto,
ouço teu nome, única parte de ti que não se dissolve
e continua existindo, puro som.
Aperto... o quê? a massa de ar em que te converteste
e beijo, beijo intensamente o nada.
Amado ser destruído, por que voltas
e és tão real assim tão ilusório?
Já nem distingo mais se és sombra
ou sombra sempre foste, e nossa história
invenção de livro soletrado
sob pestanas sonolentas.
Terei um dia conhecido
teu vero corpo como hoje o sei
de enlaçar o vapor como se enlaça
uma idéia platônica no espaço?

O desejo perdura em ti que já não és,
querida ausente, a perseguir-me, suave?
Nunca pensei que os mortos
o mesmo ardor tivessem de outros dias
e no-lo transmitissem com chupadas
de fogo aceso e gelo matizados.

Tua visita ardente me consola.
Tua visita ardente me desola.
Tua visita, apenas uma esmola

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Para ela que eu invento escrevendo *

Amo
Por princípio
Tudo o que te diz respeito

Amo a fila do banco
Se você esteve
No caixa

Recentemente

Amo o nome
De uma rua

Por que você
Tem passado por ali

Diariamente

E gosto mais
De mim

Por você ter me tocado

E escrevo
Sem medo

Um poema romântico
E anacrônico

Porque a literatura
Só é boa

Quando você
Folheia um livro

Amo seu pai
Porque ele está em você

Amo o guarda
Que fez aquela multa

Porque era seu carro

E amo o cadastro
De sua última consulta
Ao médico

Um papel com sua assinatura

É digno
De todo amor que eu sinto

Amo o fato
De ver que cada uma dessas
Palavras que escrevo

Contradizem tudo o que eu penso

Te amo
Porque te invento

Everton Behenck


*não é o titulo do poema mas sim de uma série de poemas

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Doze moradas de silêncio

hoje é dia de coisas simples
(Ai de mim! Que desgraça!
O creme de terra não voltará a aparecer!)
coisas simples como ir contigo ao restaurante
ler o horóscopo e os pequenos escândalos
folhear revistas pornográficas e
demorarmo-nos dentro da banheira

na ladeia pouco há a fazer
falaremos do tempo com os olhos presos dentro das
chávenas
inventaremos palavras cruzadas na areia... jogos
e murmúrios de dedos por baixo da mesa
beberemos café
sorriremos à pessoas e às coisas
caminharemos lado a lado os ombros tocando-se
(se estivesses aqui!)
em silêncio olharíamos a foz do rio
é o brincar agitado do sol nas mãos das crianças
descalças
hoje

Al Berto

domingo, 23 de outubro de 2011

Poema à Mulher de Signo ESCORPIÃO



Mulher de escorpião
Comigo não!
É Abelha Mestra
É a Viúva Negra
Só vai de vedete
Nunca de extra.
Cria o chamado conflito
de personalidades.
É mãe tirana
Mulher tirana
Irmã tirana
Filha tirana
Neta tirana
tirana tirana.
Agora, de cama diz
que é boa paca.

Vinicius de Moraes

Escorpião - de 23 de Outubro a 21 de Novembro

sábado, 22 de outubro de 2011

Hoje é ...


... um lindo dia de Outono.
Este, um local (possível) para estar.
Retirado daqui
Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos

Sophia de Mello Breyner Andresen

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez e quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem um criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo…

Creio no Mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender…
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

Eu não tenho filosofia: tenho sentido…
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar…

Amar é a eterna inocência
E a única inocência é não pensar…

Alberto Caeiro

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A epifania de um escravo do pensamento funcional.

Ela disse,
- És a minha casa.
O júbilo grato dele viveu pouco tempo a solo, os pontos de interrogação precipitaram-se numa Blitzkrieg que lhe cercava os neurónios com pergunta matraqueada sem descanso, "como se responde a isto?"
("Isto" era o seu talento para convencer a poesia a tocá-lo, mesmo sabendo-o tristemente imune ao arco-íris das palavras...).
Talvez o humor, podia responder "e com o empréstimo já pago, querida!"
(Jesus!).
E de repente deixou de pensar e reviveu-lhe sorrisos, afagos, despertares, a cabeça no seu ombro, mas sobretudo como lhe transformara a vida pelo simples facto de existir, a ele!, que não lera Pessoa e muito menos o outro lá em Paris.
Vai daí,
- E tu a minha arquitecta.
O nevoeiro que tanto o fascinava enroscou-se nos olhos dela...

Júlio Machado Vaz

Retirado do blog Murcon de Júlio Machado Vaz
Há uma dor que me doi!
que há dores que se sofrem, em silêncio.
esta é uma dor que não tem resposta...
que encontra o vazio!
onde estás, que nome tens?
queria pousar meus sentimentos em ti,
descansar meus sofrimentos,
deixar que nosso abraço
fosse apenas nosso encontro...

(pensamento duma solidão!)

Theo Biel

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Este inferno de amar

Este inferno de amar - como eu amo!
Quem mo pôs aqui n'alma... quem foi?
Esta chama que alenta e consome,
Que é a vida - e que a vida destrói -
Como é que se veio a atear,
Quando - ai quando se há-de ela apagar?

Eu não sei, não me lembro: o passado,
A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez... - foi um sonho -
Em que paz tão serena a dormi!
Oh! que doce era aquele sonhar...
Quem me veio, ai de mim! despertar?

Só me lembra que um dia formoso
Eu passei... dava o sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os pus.
Que fez ela? eu que fiz? - não no sei;
Mas nessa hora a viver comecei...

Almeida Garrett

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Escrevo-te com o fogo e a água

O Poeta português António Ramos Rosa nasceu em Faro a 17 de Outubro de 1924.


Escrevo-te com o fogo e a água. Escrevo-te
no sossego feliz das folhas e das sombras.
Escrevo-te quando o saber é sabor, quando tudo é surpresa.
Vejo o rosto escuro da terra em confins indolentes.
Estou perto e estou longe num planeta imenso e verde.

O que procuro é um coração pequeno, um animal
perfeito e suave. Um fruto repousado,
uma forma que não nasceu, um torso ensanguentado,
uma pergunta que não ouvi no inanimado,
um arabesco talvez de mágica leveza.

Quem ignora o sulco entre a sombra e a espuma?
Apaga-se um planeta, acende-se uma árvore.
As colinas inclinam-se na embriaguez dos barcos.
O vento abriu-me os olhos, vi a folhagem do céu,
o grande sopro imóvel da primavera efémera.

António Ramos Rosa

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Põe os teus braços à volta de mim

Põe os teus braços à volta de mim
Leva-me a um cinema de sessões contínuas
Onde não haja princípio nem fim
Mas apenas nós

Põe os teus braços à volta de mim
Vamos provar a noite dessas avenidas
Onde não haja princípio nem fim
Mas apenas nós

Esta noite não é noite
Não é noite de dormir
Nem esta nem a que vem
Nem aquela que está pra vir

As nossas noites nunca serão noites de dormir

Põe os teus braços à volta de mim
Não nos importa que falem os outros
Que somos loucos
Sem princípio nem fim
Já sabemos nós

António Pinho

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Amor em paz

Eu amei
Eu amei, ai de mim, muito mais
Do que devia amar
E chorei
Ao sentir que iria sofrer
E me desesperar

Foi então
Que da minha infinita tristeza
Aconteceu você
Encontrei em você a razão de viver
E de amar em paz
E não sofrer mais
Nunca mais
Porque o amor é a coisa mais triste
Quando se desfaz

Vinícius de Moraes

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Toda a vida acreditei:
amor é os dois se duplicarem em UM.
Mas hoje sinto: ser um é ainda muito.
De mais.
Ambiciono, sim, ser o múltiplo de nada,
Ninguém no plural.

- Ninguéns. -

Mia Couto

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Cântico

Num impudor de estátua ou de vencida,
coxas abertas, sem defesa... nua
ante a minha vigília, a noite, e a lua,
ela, agora, descansa, adormecida.

Dos seus mamilos roxo-azuis, em ferida,
meu olhar desce aonde o sexo estua.
Choro... e porquê? Meu sonho, irreal, flutua
sobre funduras e confins da vida.

Minhas lágrimas caem-lhe nos peitos...
enquanto o luar a nimba, inerte, gasta
da ternura feroz do meu amplexo.

Cantam-me as veias poemas nunca feitos...
e eu pouso a boca, religiosa e casta,
sobre a flor esmagada do seu sexo.

José Régio

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