Palavras ditas ...

Se eu gosto de poesia?
Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor... Acho que a poesia está contida nisso tudo."
Carlos Drumond de Andrade

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Soneto CXXXIII



Doces e claras águas do Mondego,
Doce repouso de minha lembrança,
Onde a comprida e pérfida esperança
Longo tempo após si me trouxe cego,
De vós me aparto, sim; porém, não nego
Que inda a longa memória, que me alcança,
Me não deixa de vós fazer mudança;
Mas quanto mais me alongo, mais me achego.
Bem poderá a Fortuna este instrumento
Da alma levar por terra nova e estranha.
Oferecido ao mar remoto, ao vento.
Mas alma, que de cá vos acompanha,
Nas asas do ligeiro pensamento,
Para vós, águas, voa, e em vós se banha.

Luís Vaz de Camões

quarta-feira, 10 de junho de 2020

E por vezes

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos  E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites   não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

David Mourão-Ferreira


quinta-feira, 21 de maio de 2020

Convite


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Vamos, ressuscitados, colher flores!
Flores de giesta e tojo, oiro sem preço...
Vamos àquele cabeço
Engrinaldar a esperança!
Temos a Primavera na lembrança;
Temos calor no corpo entorpecido;
Vamos! Depressa!
A vida recomeça!
A seiva acorda, nada está perdido!

Miguel Torga

sábado, 25 de abril de 2020

(a pretexto do silêncio) ...


(a pretexto do silêncio)
apetece-me gritar por socorro

(bastará murmurá-lo?)
quero não mutilar mais o que é meu
e isto é tão lato, tão lato como
a riqueza que desbarato.

não dizer o que escrevo,
não escrever o errado.

nem ao poeta é permitido o pecado.

que dizer de mim, casto,
escrevinhador do bonito e militante do errado?
silêncio e caldos de galinha,
essa rigorosa dieta à obesa parte do eu
esse maltratar do que é meu.

e meu também é este poema,
esta camisa limpa que vesti.
este falar alto
como se me ouvisse além do escrito:

nem eu! confesso-o
nem esta puta velha que faz merda atrás de merda,
este coirão das letras e dos ardores,
afinal meio escritor
afinal só mais um murmúrio:

socorro! - mas é em vão.
nem eu me ouço

enredado na construção
de só e apenas mais uma justificação
para a carnificina, a completa desilusão
que é abrir a cortina
e olhar
tanto que tive e tenho, se foram
e se vão.

afinal não gritei: sorri :-)
ouviu-me quem me leu
e se o perceber-me é mais complexo
que se lixe o nexo: escrevi!

e acudi ao intraduzí




Carlos Gil

domingo, 15 de março de 2020

As colunas partiam de madrugada

As colunas partiam de madrugada
Para o norte partiam para a morte
Partiam de Luanda flor pisada
Levavam morte de Luanda para o norte.

De Luanda partiam flor pisada
Colunas que levavam.
Luanda para o norte para a morte
De Luanda partiam madrugada.

 De Luanda madrugada para o norte
As colunas partiam
Levavam de Luanda a flor pisada
Para a morte do norte para a morte.

Partiam de Luanda madrugada
Colunas para o norte
Levavam morte de Luanda
Para o norte da morte flor pisada.

De Luanda partiam as colunas
Para o norte partiam flor pisada
De Luanda levavam para o norte
A morte de madrugada.

Partiam as colunas de Luanda
Levavam para a morte
A madrugada: flor pisada
Ao norte.

Manuel Alegre

15 de Março de 1961 data que marca o início da guerra Portugal-Angola, que terminou em 25 de Abril de 1974

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