Palavras ditas ...

Se eu gosto de poesia?
Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor... Acho que a poesia está contida nisso tudo."
Carlos Drumond de Andrade

domingo, 25 de dezembro de 2016

Natal à Beira-Rio



É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
A trazer-me da água a infância ressurrecta.
Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
Que ficava, no cais, à noite iluminado...
Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
À beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?

David Mourão-Ferreira

sábado, 22 de outubro de 2016

Plátano

que nem o teu desespero
nas tardes frias de chuva
nem essas mãos a tremer
sobre as cartas que escrevi
nem os plátanos
que te deixam no outono
nem a vigília do inferno
nem a indolência do céu
nem a dor da madrugada
nem dúvidas
sobre o que nasce
certezas
sobre o que morre
nem memórias, por mais doces,
nem absolutamente nada
meu amor te dê a dúvida
de que te pertenço e fico
para lá do fim da noite
e que até no tempo infindo

só os teus lábios me abrandam
só os teus beijos me calam

Pedro Guilherme-Moreira



quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Transfiguração da Montanha

1913 - Nasce no dia 19 de Outubro, no Rio de Janeiro, nome de baptismo Marcus Vinitius da Cruz de Melo Moraes

1932 - Publica pela primeira vez um poema de sua autoria na revista "A Ordem", edição de Outubro. A publicação, editada pelo intelectual católico e crítico literário Tristão de Athayde, apresenta um jovem e conservador Vinicius, com um poema bíblico de 152 versos intitulado “A transfiguração da montanha”.

Vinicius de Moraes



E uma vez Ele subiu com os apóstolos numa montanha alta
E lá se transfigurou diante deles.
Uma auréola de luz rodeava-lhe a cabeça
Ele tinha nos olhos o paroxismo das coisas doces
Sua túnica tinha a alvura da neve
E nos seus braços abertos havia um grande abraço a toda a humanidade
A natureza parou estática
Só os pássaros cantavam melodias
Melodias doces como os olhos Dele
E veio uma nuvem grande e cobriu os apóstolos
E se ouviu uma voz:
"Este é meu filho bem-amado, em quem tenho posto todas as minhas
complacências; escutai-o!"
E os apóstolos escutaram a grande voz da nuvem, e se prostraram
E quando eles ergueram os olhos não havia mais nuvem
A natureza já não estava mais parada
Tudo continuava
Como os olhos Dele continuavam doces
E Ele lhes disse:
"Não faleis desta visão até que o filho do homem ressuscite dos mortos"
E lançando os olhos em torno Ele viu a terra embaixo
Viu a terra do alto da montanha
E viu a outra montanha do outro lado da terra
Era uma pedra imensa
Dominava tudo
De baixo, a terra olhava para a montanha
Admirada!
Ela tinha sido precipitada para cima
Pelas grandes forças da natureza
Na sua base, onde a floresta escorre em seiva
Onde pelos grandes troncos descem óleos vermelhos
E onde as folhas berram um cheiro enorme de mato bravo,
Os pássaros viviam na felicidade profunda de seus cantos
Grandes cobras dormiam nos desenhos de sol
E as borboletas eram fecundadas em pleno vôo. Às vezes vinha o vento
Entrava na selva
E levava até em cima um cheiro enorme de mato bravo.
A montanha tinha em si toda a natureza
Tinha um rio que dormia nos desenhos de sol
E que de repente acordava e pulava nas cascatas.
Ele viu tudo
Viu a montanha e viu a floresta
Viu principalmente a floresta
E amou muito a montanha
A montanha que possuía toda a natureza
Menos Ele
Seus divinos lábios entreabriram-se num sorriso
E ele falou para Deus:
"Dia virá em que hei de ter aquela pedra por trono
e lá de novo eu me transfigurarei!"

Depois tudo mudou
O mundo girou sempre, andou sempre
O mundo judeu errante.
Não parava na catástrofe
As guerras se sucediam
Os flagelos se sucediam
Andavam, sempre para a frente, sempre para a frente
Flagelos judeus errantes
O grande sentimento era o ódio
Ódio de tudo
Ódio grande
De corações pequenos
Os homens só tratavam de si
As mulheres tratavam de todos
Não mais a beleza da vida
Não mais o amor.
O tigre desperta e mata tudo
Mata os pequeninos que choram de medo
Mata as mães que têm os olhos despertos nas grandes noites da vida
E os pais que têm a fronte enrugada pelas preocupações.
Mata tudo.
Quer matar até Deus
Porque sabe que Ele vê todas as coisas
Vê os pequeninos que morrem
Vê os pais e as mães que morrem
E porque tem medo da Sua justiça.
Nas grandes sociedades havia muitas festas
Havia muitas festas e muitos vícios
Os homens bebiam para esquecer o dia de amanhã
E bebiam no dia de amanhã para esquecer o dia que passou
As mulheres bebiam para imitar os homens
E fumavam também
Não mais a arte
Não mais a poesia
A arte está na alma dos homens que bebem
A poesia canta a arte dessas almas bêbadas
Que é da poesia profunda da natureza?
Que é da arte da natureza?
Morreu.
Morreu com a alma do homem.
A alma do homem é como o amor morto
Onde todas as coisas bóiam à superfície
Ai! O tempo em que a alma do homem era o oceano
O grande oceano que guarda pérolas e possui vegetações esquisitas
E onde a luz bóia à superfície!
Mas o mundo mudou.
Ele foi esquecido
A transfiguração foi esquecida
Os homens só se lembraram Dele
Ou para ofendê-lo enquanto viviam
Ou para temê-lo covardemente na hora da morte.

Mas uns houve que não perderam o sentido da vida
Que guardaram na alma a grande simplicidade das coisas boas
Uns, que perdoavam
Uns, que socorriam e sorriam para a morte gloriosa
Eles tinham dentro da roupa preta que os vestia
A alma branca dos que são os bem-aventurados de Deus
Eles eram poucos
Foram aumentando
Pregaram aos outros o sentido da vida que eles possuíam
O mundo não escutava
Tinha a surdez profunda da inteligência
A vontade perseverante contudo fez efeito
E um dia, alto, formidável
A bela cabeça nas nuvens
E os pés na rocha bruta
Ele surgiu num esplendor de divindade
Transfigurado
Os braços abertos como num abraço
E os olhos suaves olhando a terra embaixo
Apareceu
Branco e enorme
Sobre a rocha escura e enorme
A rocha e Ele
Se unificaram na mesma beleza
O grupo formidável
Vivia a impressão
Da grande cena bíblica
A pedra que guardava a floresta
E o grande gigante meigo
Era como a cena bíblica
Da fundação da Igreja
A pedra enorme
Era a própria força espiritual de são Pedro
Posta na matéria
A base
A pedra da Igreja
E em cima, Ele, Senhor de todas as coisas
Belo e agigantado
Olhando as coisas embaixo
Com o olhar bom do que foi Homem
Com o amor do que […] o único Deus.
Senhor!
Tu estás lá
E tu estás em todos os lugares
E ouço a tua voz na música do mundo
E sinto a tua mão na plástica das coisas
Tu és o ponto de partida
Tu és o caminho
E és o fim do caminho
És o cardo que fere os pés
E a grama macia que os repousa
E a grande tempestade de vento
E o ar parado que sereniza.
És o pranto dos olhos
E o riso da boca
És o sofrimento do mundo
Numa promessa de eterna felicidade
És Deus
Deus que vê todas as coisas e a todas dá remédio
E que é o único perdão:
         Amém.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

The Times They Are A-Changin’ - Bob Dylan, Nobel da Literatura 2016


Come gather ’round people
 Wherever you roam
 And admit that the waters
 Around you have grown
 And accept it that soon
 You’ll be drenched to the bone
 If your time to you is worth savin’
 Then you better start swimmin’ or you’ll sink like a stone
 For the times they are a-changin’

 Come writers and critics
 Who prophesize with your pen
 And keep your eyes wide
 The chance won’t come again
 And don’t speak too soon
 For the wheel’s still in spin
 And there’s no tellin’ who that it’s namin’
 For the loser now will be later to win
 For the times they are a-changin’

 Come senators, congressmen
 Please heed the call
 Don’t stand in the doorway
 Don’t block up the hall
 For he that gets hurt
 Will be he who has stalled
 There’s a battle outside and it is ragin’
 It’ll soon shake your windows and rattle your walls
 For the times they are a-changin’

 Come mothers and fathers
 Throughout the land
 And don’t criticize
 What you can’t understand
 Your sons and your daughters
 Are beyond your command
 Your old road is rapidly agin’
 Please get out of the new one if you can’t lend your hand
 For the times they are a-changin’

 The line it is drawn
 The curse it is cast
 The slow one now
 Will later be fast
 As the present now
 Will later be past
 The order is rapidly fadin’
 And the first one now will later be last
 For the times they are a-changin’


quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Saudade

De quem é esta saudade
que meus silêncios invade,
que de tão longe me vem?
  
De quem é esta saudade,
de quem?
  
Aquelas mãos só carícias,
Aqueles olhos de apelo,
aqueles lábios-desejo...
  
E estes dedos engelhados,
e este olhar de vã procura,
e esta boca sem um beijo...
  
De quem é esta saudade
que sinto quando me vejo?

                   Gilka Machado

terça-feira, 26 de julho de 2016

Congratulations Mick Jagger


Faz hoje 73 anos.
Nasceu na cidade de Dartford, Kent, no sudeste da Inglaterra, com o nome Michael Phillip Jagger.
Congratulations and long live Sir Mick Jagger






quinta-feira, 21 de julho de 2016

Cat Stevens





Faz hoje 68 anos.
Nasceu em Londres e recebeu o nome de Steven Demetre Georgiou. Ficou conhecido como Cat Stevens, cantor e compositor britânico. Converteu-se ao islamismo, mudou de nome para Yusuf Islam e abandonou a música em 1978 ...

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Invictus

Nelson Rolihlahla Mandela nasceu há 98 anos em Mvezo - África do Sul



Out of the night that covers me,
Black as the pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.

In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds and shall find me unafraid.

It matters not how strait the gate,
How charged with punishment the scroll,
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul.

William Ernest Henley 
Gloucester-23 de Agosto de 1849 - Woking-11 de Julho de 1903


Tradução do poema aqui, aqui, aqui, aqui, aqui ...

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Por todos aqueles que se dirigiam à vida

Por todos aqueles que se dirigiam à vida, que só esperavam vida
e que, sem saber, caíram desamparados no abismo opaco da morte;
por todos aqueles que acordavam de manhã, que se alimentavam
de ilusão, invencíveis perante a sua teimosia inocente, e que, na
dobra de um instante, desprotegidos da solidão, acordados a meio
de um sonho, caíram desamparados no abismo opaco da morte;
por todos aqueles olhares que refletiam a luz do dia, montras de
segredos, rostos que lembraremos com um sorriso brando e que,
sem motivo, caíram desamparados no abismo opaco da morte;
estas palavras frágeis e inúteis, este tempo breve e insuficiente.
Existiram como nós, foram gente como nós, sentiram como nós.
Por todas as palavras que disseram, pela forma humana como as
pronunciaram, pela memória incandescente da sua voz, pelo seu
tempo de pessoas, estas palavras incapazes, este tempo incapaz
e o caminho x ou y que escolhemos para segui-los.

José Luís Peixoto - inédito
15.07.16






terça-feira, 5 de julho de 2016

Idade

Mia Couto, Prémio Camões 2013, nasceu na Beira - Moçambique há 61 anos.  


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Mia Couto por Maria José Cabral
Copiado aqui


Mente o tempo:
a idade que tenho
só se mede por infinitos.

Pois eu não vivo por extenso.

Apenas fui a Vida
em relampejo do incenso.

Quando me acendi
foi nas abreviaturas do imenso.



Mia Couto - in “Vagas e lumes”

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Apontamento













A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.

Não se zangam com ela.
São tolerantes com ela.
O que eu era um vaso vazio?

Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si-mesmos, não conscientes deles.

Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-no especialmente, pois não sabem porque ficou ali.

Álvaro de Campos

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Soneto do maior amor




Maior amor nem mais estranho existe
Que o meu, que não sossega a coisa amada
E quando se sente alegre, fica triste
E se vê descontente, dá risada.
E que só fica em paz se lhe resiste
O amado coração, e que se agrada
Mais da eterna aventura em que persiste
Que de uma vida mal-aventurada.

Louco amor  meu, que quando toca, fere
E quando fere vibra, mas prefere
Ferir a fenecer - e vive a esmo
Fiel à sua lei de cada instante
Desassombrado, doido, delirante
Numa paixão de tudo e de si mesmo.

Vinicius de Moraes

domingo, 29 de maio de 2016

Não é o coração

Não é o coração
mas esta carne
em seu rumor.

Não é o coração
mas teu silêncio
de intenso furor.

Não é o coração
mas as mãos
sem corpo, vazias.
Na grave melodia
de um instante
tu e eu
em desequilíbrio
na infame
consistência
de um absoluto
obstáculo.

Ana Marques Gastão

sábado, 28 de maio de 2016

Ao meu belo pai ex-emigrante









Em 1922, no bairro da Mafalala em Lourenço Marques, nasceu o poeta José Craveirinha, primeiro autor africano galardoado com o Prémio Camões.









Pai:
as maternas palavras de signos
vivem e revivem no meu sangue
e pacientes esperam ainda a época de colheita
enquanto soltas já são as tuas sentimentais
sementes de emigrante português
espezinhadas no passo de marcha
das patrulhas de sovacos suando
as coronhas de pesadelo.

E na minha rude e grata
sinceridade não esqueço
meu antigo português puro
que me geraste no ventre de uma tombasana
eu mais um novo moçambicano
semiclaro para não ser igual a um branco qualquer
e seminegro para jamais renegar
um glóbulo que seja dos Zambezes do meu sangue.

E agora
para além do antigo amigo Jimmy Durante a cantar
e a rir-se sem nenhuma alegria na voz roufenha
subconsciência dos porquês de Buster Keaton sorumbático
achando que não valia a pena fazer cara alegre
e um Algarve de amendoeiras florindo na outra costa
ante os meus sócios Bucha e Estica no "écran" todo
e para sempre um zinco tap-tap de cacimba no chão
e minha Mãe agonizando na esteira em Michafutene
enquanto tua voz serena profecia paternal: - "Zé:
quando eu fechar os olhos não terás mais ninguém."

Oh, Pai:
Juro que em mim ficaram laivos
do luso-arábico Algezur da tua infância
mas amar por amor só amo
e somente posso e devo amar
esta minha bela e única nação do Mundo
onde minha mãe nasceu e me gerou
e contigo comungou a terra, meu Pai.
E onde ibéricas heranças de fados e broas
se africanizaram para a eternidade nas minhas veias
e teu sangue se moçambicanizou nos torrões
da sepultura de velho emigrante numa cama de hospital
colono tão pobre como desembarcaste em África
meu belo Pai ex-português.

Pai:
O Zé de cabelos crespos e aloirados
não sei como ou antes por tua culpa
o "Trinta-Diabos" de joelhos esfolados nos mergulhos
à Zamora nas balizas dos estádios descampados
avançado-centro de "bicicleta" à Leónidas no capim
mortífera pontaria de fisga na guerra aos gala-galas
embasbacado com as proezas do Circo Pagel
nódoas de caju na camisa e nos calções de caqui
campeão de corridas no xitututo Harley-Davidson
os fundilhos dos calções avermelhados nos montes
do Desportivo nas gazetas à doca dos pescadores
para salvar a rapariga Maureen O'Sullivan das mandíbulas
afiadas dos jacarés do filme de Tarzan Weissmuller
os bolsos cheios de tingolé da praia
as viagens clandestinas nas traseiras gã-galhã-galhã
do carro eléctrico e as mangas verdes com sal
sou eu, Pai, o "Cascabulho" para ti
e Sontinho para minha Mãe
todo maluco de medo das visões alucinantes
de Lon Chaney com muitas caras.

Pai:
Ainda me lembro bem do teu olhar
e mais humano o tenho agora na lucidez da saudade
ou teus versos de improviso em loas à vida escuto
e também lágrimas na demência dos silêncios
em tuas pálpebras revejo nitidamente
eu Buck Jones no vaivém dos teus joelhos
dez anos de alma nos olhos cheios da tua figura
na dimensão desmedida do meu amor por ti
meu belo algarvio bem moçambicano!

E choro-te
chorando-me mais agora que te conheço
a ti, meu pai vinte e sete anos e três meses depois
dos carros na lenta procissão do nosso funeral
mas só Tu no caixão de funcionário aposentado
nos limites da vida
e na íris do meu olhar o teu lívido rosto
ah, e nas tuas olheiras o halo cinzento do Adeus
e na minha cabeça de mulatinho os últimos
afagos da tua mão trémula mas decidida sinto
naquele dia de visitas na enfermaria do hospital central.

E revejo os teus longos dedos no dirlim-dirlim da guitarra
ou o arco da bondade deslizando no violino da tua aguda tristeza
e nas abafadas noites dos nossos índicos verões
tua voz grave recitando Guerra Junqueiro ou Antero
e eu ainda Ricardito, Douglas Fairbanks e Tom Mix
todos cavalgando e aos tiros menos Tarzan analfabeto
e de tanga na casa de madeira e zinco
da estrada do Zichacha onde eu nasci.

Pai:
Afinal tu e minha mãe não morreram ainda bem
mas sim os símbolos Texas Jack vencedor dos índios
e Tarzan agente disfarçado em África
e a Shirley Temple de sofismas nas covinhas da face
e eu também é que mudámos.
E alinhavadas palavras como se fossem versos
bandos de sécuas ávidas sangrando grãos de sol
no tropical silo de raivas eu deixo nesta canção
para ti, meu Pai, minha homenagem de caniços
agitados nas manhãs de bronzes
chorando gotas de uma cacimba de solidão nas próprias
almas esguias hastes espetadas nas margens das húmidas
ancas sinuosas dos rios.

E nestes versos te escrevo, meu Pai
por enquanto escondidos teus póstumos projectos
mais belos no silêncio e mais fortes na espera
porque nascem e renascem no meu não cicatrizado
ronga-ibérico mas afro-puro coração.
E fica a tua prematura beleza afro-algarvia
quase revelada nesta carta elegia para ti
meu resgatado primeiro ex-português
número UM Craveirinha moçambicano!

José Craveirinha

Karingana ua karingana - 1ª Edição, Lourenço Marques - Académica, 1974
Fotografia retirada do site Mozambique History Net - José Craveirinha, 1922-2003 - Dossier MZ-0056 [part 4]

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Trova do vento que passa

Manuel Alegre faz hoje 80 anos


Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio -- é tudo o que tem
quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.

Manuel Alegre



quarta-feira, 4 de maio de 2016

Enigma do Amor


Olho-te fixamente para que permaneças em mim.
Toda esta ternura é feita de elementos opostos
Que eu concilio na síntese da poesia.

O conhecimento que tenho de ti
É um dos meus complexos castigos.
Adivinho através do véu que te cobre
O canto de amor sufocado,
O choque ante a palavra divina, a antecipação da morte.

Minha nostalgia do infinito cresce
Na razão direita do afastamento em que estou do teu corpo.

Murilo Mendes


segunda-feira, 2 de maio de 2016

Onde anda você

E por falar em saudade
Onde anda você
Onde andam os seus olhos
Que a gente não vê
Onde anda esse corpo
Que me deixou morto
De tanto prazer

E por falar em beleza
Onde anda a canção
Que se ouvia na noite
Dos bares de então
Onde a gente ficava
Onde a gente se amava
Em total solidão

Hoje eu saio na noite vazia
Numa boemia sem razão de ser
Na rotina dos bares
Que apesar dos pesares
Me trazem você

E por falar em paixão
Em razão de viver
Você bem que podia me aparecer
Nesses mesmos lugares
Na noite, nos bares
Onde anda você






Vinicius de Moraes

domingo, 1 de maio de 2016

Em Maio


Em Maio, amo-te nua
sem memória do inverno,
amo-te o corpo na rua
amo-te o rasgo de inferno
e nem sol te contém,
passas da sombra, da luz,
do tempero e do desdém,
da vénia que te depus,

e vens-te.
Em Maio,

amo-te no vestíbulo
de todos os lugares do mundo,
assim, rotundo,
imundo,
nos pórticos de palácios
nas antecâmaras do mar
nas dunas
no quarto
no tecto
nos espasmos do capim
no não no sim
nas montanhas e planaltos
nos saltos altos
nas desculpas nos pretextos
entradas de dicionário
não somos corpos
bissextos
amantes de breviário
vais fazer-me no ginásio
vou comer-te no granito
do tampo que te tiver
em refeições imprecadas na incoerência da nossa
cozinha.
Venha quem vier

Em Maio és minha

Pedro Guilherme-Moreira

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Vem à quinta-feira



É quase fim-de-semana e podemos, talvez, beber uma cerveja
ao cair da tarde, enquanto planeamos a viagem a Paris. E se Paris
for muito caro - sei que isto não está fácil - podemos ir a Guimarães
assistir a um concerto, que ouvir é a maneira mais pura de calar.

Vem à Quinta-feira.

A seguir, temos ainda a Sexta e talvez me esperes à porta do emprego,
e talvez fiques para Sábado e Domingo, e talvez o mundo pare
de acabar tão depressa.

Vem à Quinta-feira.
Mas não venhas nesta, vem na próxima.
Nesta, tenho um compromisso que não posso adiar, é um compromisso
profissional - sabes que isto não está fácil - e talvez nos dê hipótese de irmos
a Paris ou a Guimarães. Vem na próxima, que eu preciso de tempo
para arranjar o cabelo, para arranjar o coração,
para elaborar a lista do que me falta fazer contigo.

Vem à Quinta-feira e não te demores.
Enquanto te escrevo, já fui elaborando a lista
(sabes como gosto de pensar em tudo
ao mesmo tempo)
e afinal o que me falta fazer contigo
não é caro:
- viajar de auto-caravana,
- dançar pela Estrada Nacional,
- ver-te chorar.
Choras tão pouco. Ainda bem que estás contente.

Vem à Quinta-feira.

Se não pudermos ir a Paris ou a Guimarães, não te preocupes.
Vem na mesma, que eu vou apanhando as canas-da-índia, as fiteiras,
eu vou recolhendo a palha e reunindo cordas e lona.
Já estive a aprender no Youtube como se faz uma cabana.
Vem na mesma, que eu vou procurando um lugar seguro.
Vem na mesma porque a cabana, como a casa, só funciona com amor
- ou, pelo menos, é o que diz o Youtube.

Temos ainda tanto para fazer.
Por isso, se algum dia voltares, meu amor, volta numa Quinta.

Filipa Leal







segunda-feira, 25 de abril de 2016

Esta Gente / Essa Gente


O que é preciso é gente
gente com dente
gente que tenha dente
que mostre o dente

Gente que não seja decente
nem docente
nem docemente
nem delicodocemente

Gente com mente
com sã mente
que sinta que não mente
que sinta o dente são e a mente

Gente que enterre o dente
que fira de unha e dente
e mostre o dente potente
ao prepotente

O que é preciso é gente
que atire fora com essa gente

Essa gente dominada por essa gente
não sente como a gente
não quer
ser dominada por gente

NENHUMA!

A gente
só é dominada por essa gente
quando não sabe que é gente

Ana Hatherly, in "Um Calculador de Improbabilidades" 

sexta-feira, 15 de abril de 2016

As nossas madrugadas




Desperta-me de noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas
o sono em que me deito

pois suspeitas

que com ele me visto e me
defendo

É raiva
então ciume
a tua boca

é dor e não
queixume
a tua espada

é rede a tua língua
em sua teia

é vício as palavras
com que falas

E tomas-me de foça
não o sendo
e deixo que o meu ventre
se trespasse

E queres-me de amor
e dás-me o tempo

a trégua
a entrega
e o disfarce

E lembras os meus ombros
docemente
na dobra do lenços que desfazes
na pressa de teres o que só sentes
e possuires de mim o que não sabes

Despertas-me de noite
com o teu corpo

tiras-me do sono
onde resvalo

e eu pouco a pouco
vou repelindo a noite

e tu dentro de mim
vais descobrindo vales.



Maria Teresa Horta - Cem poemas (antologia pessoal): 22 inéditos

segunda-feira, 21 de março de 2016

Ode à Paz

 Dia Mundial da Poesia



Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
pelas aves que voam no olhar de uma criança,
pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
pela branda melodia do rumor dos regatos,
pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
pelos aromas maduros de suaves outonos,
pela futura manhã dos grandes transparentes,
pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
abre as portas da História,
deixa passar a Vida!

Natália Correia

domingo, 20 de março de 2016

Anunciação

Copiado aqui
Surdo murmúrio do rio,
a deslizar, pausado, na planura.
Mensageiro moroso
dum recado comprido,
di-lo sem pressa ao alarmado ouvido
dos salgueirais:
a neve derreteu
nos píncaros da serra;
o gado berra
dentro dos currais,
a lembrar aos zagais
o fim do cativeiro;
anda no ar um perfumado cheiro
a terra revolvida;
o vento emudeceu;
o sol desceu;
a primavera vai chegar, florida.

Miguel Torga

sexta-feira, 18 de março de 2016

Se partires, não me abraces – a falésia que se encosta
uma vez ao ombro do mar quer ser barco para sempre
e sonha com viagens na pele salgada das ondas.

Quando me abraças, pulsa nas minhas veias a convulsão
das marés e uma canção desprende-se da espiral dos búzios;
mas o meu sorriso tem o tamanho do medo de te perder,
porque o ar que respiras junto de mim é como um vento
a corrigir a rota do navio. Se partires, não me abraces –



o teu perfume preso à minha roupa é um lento veneno
nos dias sem ninguém – longe de ti, o corpo não faz
senão enumerar as próprias feridas (como a falésia conta
as embarcações perdidas nos gritos do mar); e o rosto
espia os espelhos à espera de que a dor desapareça.
Se me abraçares, não partas.

Maria do Rosário Pedreira

quarta-feira, 16 de março de 2016

Pretexto



Por que não cai a noite, de uma vez? 
— Custa viver assim aos encontrões! 
Já sei de cor os passos que me cercam, 
o silêncio que pede pelas ruas, 
e o desenho de todos os portões. 

Por que não cai a noite, de uma vez? 
— Irritam-me estas horas penduradas 
como frutos maduros que não tombam. 

(E dentro em mim, ninguém vem desfazer 
o novelo das tardes enroladas.) 

Maria Alberta Menéres 

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