Palavras ditas ...

Se eu gosto de poesia?
Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor... Acho que a poesia está contida nisso tudo."
Carlos Drumond de Andrade

quarta-feira, 25 de abril de 2012

25 de Abril


Esta é a madrugada que eu esperava
0 dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Revolução

Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta

Como puro inícío
Como tempo novo
Sem mancha nem vício

Como a voz do mar
Interior de um povo

Como página em branco
Onde o poema emerge

Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação

Sophia de Mello Breyner Andresen

As portas que Abril abriu


segunda-feira, 16 de abril de 2012

Rosie


Eu, Rosie, eu se falasse, eu dir-te-ia
Que partout, everywhere, em toda a parte,
A vida égale, idêntica, the same,
É sempre um esforço inútil,
Um voo cego a nada.
Mas dancemos, dancemos
Já que temos a valsa começada
E o Nada
Deve acabar-se também,
Como todas as coisas.
Tu pensas
Nas vantagens imensas
Dum par
Que paga sem falar;
Eu nauseado e grogue,
Eu penso, vê lá bem,
Em Arles e na orelha de Van Gogh …
E assim entre o que eu penso e o que tu sentes
A ponte que nos une – é estar ausentes.

Reinaldo Ferreira

sábado, 14 de abril de 2012

Morrer de pé na Praça Syntagma


Quando se ouviu um tiro na Praça Syntagma,
logo houve quem dissesse: “É a polícia que ataca !”.
Mas não, Dimitris Christoulas trazia consigo a arma,
a carta de despedida, a dor sem nome, a bravura,
e vinha só, sem medo, ele que já vivera os tempos
de silêncio e chumbo do terror dos coronéis.
Mas nessa altura era jovem e tinha esperança.
Agora tudo isso findara, mas não a dignidade,
que essa, por não ter preço, não se rende nem desiste.

Dimitris Christoulas podia ser apenas um pai cansado,
um avô sem alento para sorrir, um irmão mais velho,
um vizinho tão cansado de sofrer. Mas era muito mais
do que isso. Era a personagem que faltava
a esta tragédia grega que nem Sófocles ou Édipo
se lembraram de escrever, por ser muito mais próxima
da vida do que da imaginação de quem efabula.
Ouviu-se o tiro, seco e certeiro, e tudo terminou ali
para começar logo no instante seguinte sob a forma
de revolta que não encontra nas bocas
as palavras certas para conquistar a rua.
Quando assim acontece, o silêncio derruba muralhas.
Aos jovens, que podiam ser seus filhos e netos,
o mártir da Praça Syntagma pediu apenas
para não se renderem, para não se limitarem
a ser unidades estatísticas na humilhação de uma pátria. Não lhes pediu para imitarem o seu gesto,
mas sim que evitassem a sua trágica repetição.
E eles ouviram-no e choraram por ele, e com ele,
sabendo-o já a salvo da humilhação
de deambular pelas lixeiras para não morrer de fome.

Até os deuses, na sua olímpica distância,
se perfilaram de assombro ante a coragem deste gesto.
Até os deuses sentiram desprezo, maior do que é costume, pela ignomínia de quem se vende
para tornar ainda maior a riqueza de quem manda.
A Dimitris bastou um só disparo, limpo e breve,
para resumir a fogo toda a razão que lhe ia na alma. Estava livre. Tornara-se herói de tragédia
enquanto a Primavera namorava a bela Atenas,
deusa tantas vezes idolatrada e venerada.
Assim se despedia um homem de bem,
com a coragem moral de quem o destino não vence.

Quando o tiro ecoou na praça de todas as revoltas,
Dimitris Christoulas deixou voar uma pomba,
uma borboleta, uma gaivota triste do Pireu
e disse, com um aceno: “Eu continuo aqui,
de pé firme, porque nada tem a força de um homem
quando chega a hora de mostrar que tem razão”.
Depois vieram nuvens, flores e lágrimas,
súplicas, gritos e preces, e o mártir da Syntagma,
tão terreno e finito como qualquer homem com fome,
ergueu-se nos ares e abraçou a multidão com ternura.

José Jorge Letria
6 de Abril de 2012

sexta-feira, 13 de abril de 2012

É a carícia da mão


Marc Chagall




















É a caricia da mão na minha face
e o meu olhar repousado
o sorriso que passa
rápido
de mim a ti.

É toda uma ternura que nos chama
é a desolada solidão de quem se ama
e conhece o espaço
que fica
de aqui ali.

É uma inclinação suspensa
por toda a pele que nos limita o corpo
gemido, doçura, pena
como o poema
a chamar por mim.

Salette Tavares

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Inocência

Imagem retirada Daqui

Eu que procuro a paz e a detesto,
que sonho as Babilónias, já sabendo
o cansaço que delas hei-de ter,
eu que tudo amo… e nada quero,
embora sempre em busca doutra coisa,
donde tiro ainda a força dos meus braços?

Adolfo Casais Monteiro

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Canção breve

foto daqui



Tudo me prende à terra onde me dei:
o rio subitamente adolescente,
a luz tropeçando nas esquinas,
as areias onde ardi impaciente.





Tudo me prende do mesmo triste amor
que há em saber que a vida pouco dura,
e nela ponho a esperança e o calor
de uns dedos com restos de ternura.

Dizem que há outros céus e outras luas
e outros olhos densos de alegria,
mas eu sou destas casas, destas ruas,
deste amor a escorrer melancolia.

Eugénio de Andrade

terça-feira, 10 de abril de 2012

A tua mão nas minhas conversando

 Van Gogh, noite estrelada sobre o Ródano














A tua mão nas minhas conversando
junto à claridade ténue de setembro
O espelho da minha face deslizando
preso da tua boca receosa Lembro

dos teus lábios o tempo agonizando
pela espera No teu regaço soçobro
como palavras de velhos meditando
sobre o desejo porquê seu malogro

e perda Recolhe na tua dor a minha
pelo desvão da angústia esgotamos
a morte que em silêncio se avizinha

Quem coração não poupa sabe dar?
Vamos carregando enganos?Vamos
Mas morte não Ela não pode amar

P. M. Carregã

Retirado do blog Poesia em Ouviescrito

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Lua Nova

PEMBA - noite de luar na praia do Wimbe - Do blog luarafricano

















"Quenguêlêquêze!... Quenguêlêquêze!..."

Surgia a lua nova,
E a grande nova]
— Quenguêlêquêze!...— ia de boca em boca
Traçando os rostos de expressões estranhas,
Atravessando o bosque, aldeias e montanhas,
Numa alegria enorme, uma alegria louca,

Loucamente,
Perturbadoramente...

Danças fantásticas
Punham nos corpos vibrações elásticas,
Febris,
Ondeando ventres, troncos nus, quadris...

E ao som de palmas
Os homens, cabriolando,
Iam cantando
Medos de estranhas vingativas almas,
Guerras antigas
Com destemidas impias inimigas
— obscenidades claras, descaradas,
Que as mulheres ouviam com risadas
Ateando mais e mais
O rítmico calor das danças sensuais.

“Quenguêlêquêze!... Quenguêlêquêze!...”

Uma mulher de vez em quando vinha,
Coleava a espinha,
Gingava as ancas voluptuosamente,
E diante do homem, frente a frente,
Punham-se os dois a simular segredos...
— Nos arvoredos
Ia um murmúrio eólico
Que dava à cena, à luz da lua, um que diabólico...

“Quêze!.Quenguêlêquêze!...”

... Entanto uma mulher saíra sorrateira
Com outra mais velhinha;
Dirigiu-se na sombra à montureira,
Com uma criancinha.
Fazia escuro e havia
Ali um cheiro estranho
A cinzas ensopadas,
Sobras de peixe e fezes de rebanho
Misturadas...O vento, perpassando a cerca de caniço,
Trazia para fora o ar abafadiço,
Um ar de podridão...
E as mulheres entravam com um tição:
E enquanto a mais idosa
Pegava na criança e a mostrava à lua
Dizendo-lhe: “Olha, é a lua”,
A outra, erguendo a mão,
Lançou direito à lua a acha luminosa.
— O estrepitar de palmas foi morrendo...
E a lua foi crescendo... foi crescendo...
Lentamente...
Como se fora em brando e afogado leito
Deitaram a criança, revolando-a,
Ali na imunda podridão, no escuro,
Lhe deu o peito...

Então, o pai chegou,
Cercou-a de desvelos,
De manso a conduziu p´los cotovelos,
Tomou-a nos seus braços e cantou
Esta canção ardente:

“Meu filho, eu estou contente!
Agora já na temo que ninguém
Mofe de ti na rua,
E diga, quando errares, que tua mãe
Te não mostrou a lua!

Agora tens abertos os ouvidos
Para tudo compreender;
Teu peito afoitará, impávido, os rugidos
Das feras, sem tremer...
Meu filho, estou contente!
Tu és agora um ser inteligente,
E assim hás-de crescer, hás-de ser homem forte

Até que já cansado
Um dia muito velho
De filhos, rodeado,
Sentido já dobrar–se o teu joelho
Virá buscar-te a Morte...
Meu filho, eu estou contente!
Agora, sim, sou pai!...”

Na aldeia, lentamente,
O estrepitar das palmas foi morrendo...
E a lua foi crescendo...
— Crescendo
Como um ai...

Rui de Noronha

domingo, 8 de abril de 2012

No Limiar do Sonho

Caspar David Friedrich


Sabe tão bem...
Quando o silêncio da noite vem a cair
Haver nos olhos o brilho da felicidade
Haver alguém a nosso lado para amar.
Sabe tão bem...
Fazer Amor e aninhado ficar a sonhar
Que voamos sobre as luzes da cidade
Tendo o céu para desvendar e colorir.
Sabe tão bem...
Puxar os lençóis para sentir outro calor
Mover o corpo no sentido de encontrar
O apelo do desejo que o sono engana.
Sabe tão bem...
Deixar correr o pensamento que emana
E nesse momento saber onde procurar
Tudo o que é preciso para viver o Amor.
Sabe tão bem...
Adormecer com uma esperança já definida
No sorriso que em nossa boca aflora o dia
Ciente que o amanhã virá com a verdade.
Sabe tão bem...
Por fim haver a força que faz da realidade
Uma passagem para ir feliz na companhia
De tudo o que sabe tão bem em nossa vida.

Fernando Azevedo

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Os teus pés

Quando não posso contemplar teu rosto,
contemplo os teus pés.

Teus pés de osso arqueado,
teus pequenos pés duros.

Eu sei que te sustentam
e que teu doce peso
sobre eles se ergue.

Tua cintura e teus seios,
a duplicada púrpura
dos teus mamilos,
a caixa dos teus olhos
que há pouco levantaram vôo,
a larga boca de fruta,
tua rubra cabeleira,
pequena torre minha.

Mas se amo os teus pés
é só porque andaram
sobre a terra e sobre
o vento e sobre a água,
até me encontrarem.

Pablo Neruda

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Cama

Paul Valéry - A cama desfeita













Podia ser uma cama aberta no horizonte
e os teus cabelos num poente incendiado.
Podia ser o teu sexo num cume de monte,
e os teus seios despidos sobre este prado.

A mão que esconde mais do que oferece,
os olhos de presa dominando o caçador.
E os teus lábios que murmuram a prece
de quem só reza no instante do amor.

E se falasse dos teus olhos, dos teus braços
desse corpo em que me perco e te ganho,
não mais acabaria o que tem de acabar;

uma respiração de suspiros e de abraços
neste canto em que és tudo o que eu tenho,
nesta viagem em que não tem fundo o mar.

Nuno Júdice

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Porque não soube merecer

Vénus Deitada  de João Cutileiro

Porque não soube merecer a glória, a mais suave
de me deitar a teu lado
e que o sangue a palavra
abolisse a diferença entre o meu corpo e a minha voz
porque te perdi

não sei quem sou 



António Ramos Rosa

terça-feira, 3 de abril de 2012

materiais para confecção de um espanador de tristezas


tinha aprendido que era muito importante criar desobjectos.
certa tarde, envolto em tristezas, quis recusar o cinzento. não munido de nenhum artefacto alegre, inventei um espanador de tristezas.
era de difícil manejo – mas funcionava.

ondjaki







Imagem retirada do blog Manipulator of crowds

domingo, 1 de abril de 2012



Dentro de mim não há ninguém
à beira do rio que me percorre.
Sou poeta dos desejos e das fraquezas
sou lume e enxofre das palavras
que vou parindo
em poemas que ninguém lê.
Sou a exacta distância entre Deus
e as vozes perdidas
o sacrário das mentes que se eclipsam
e dos rios que se suicidam no mar.

Junto ao rio dos teus olhos
há sempre um poema
que tem o sabor da amora
o perfume das palavras sem uso
o som de um violino que chora.

Adão Cruz


Imagem retirada do site: A arte de Adão Cruz

Em destaque

orgasmo

fui ver o mar fez-se a mim fiz-me a ele as ondas desta vez tombaram de pé e espumaram de gozo  Bénèdicte Houart (no dia internacional do org...