"Há dias, numa daquelas noites em que o pavor por esta comunicação me atormentava, tornando o correr de páginas na Internet uma ilusão que aliviava a realidade de ter uma página branca iluminada e vazia à minha frente, sem nada para contar-vos, tive uma visão memorável, e, sim, ela capaz de reduzir numa imagem essa ausência de palavras significantes, e que era o meu tormento.
Vagueava por um dos sítios dedicados a glorificar as maravilhas naturais de Portugal e, de clique em clique, fui lendo e fui-me perdendo, blogues, páginas e páginas que eram improváveis quando liguei o computador e se sucediam em turbilhão, naquela fuga à minha inépcia em contar o que será ser-se um escritor ausente da sua raiz e tinteiro, e como medram os seus ramos, de forma a darem uma copa mínima a essa proscrita condição.
Essas páginas, de refúgio também elas, levaram-me a uma imagem que sobressaiu e colou-se-me à página branca como a explicação perfeita, de maravilhosamente desajustada que era, improvável mas subsistente a conceitos de botânica que, diziam-me, naquela imagem o que estava errado e não lhe pertencia era o que a fazia assim, bela.
Falei-vos em botânica porque a peça desajustada era uma árvore. Não nos espantam as palmeiras de ascendência tropical que vemos em cuidados relvados de jardins. É um exotismo comum, e afinal estamos na borda do Mediterrâneo. Nem as outras, periodicamente vistas ou contadas, de raquíticos arbustos de suruma descobertos nas clandestinas traseiras da sociedade, em heranças coloniais tão resistentes como a memória ou a nostalgia. Nada disso nos surpreende na paisagem ou nas notícias, mas como foi diferente aquela imagem súbita no meu inaudito caso…
Eu vi, na minha visão sedenta de fábulas para resolver o meu problema de escrita estrangulada, juro-vos que vi uma acácia-rubra, própria da moldura africana, na margem dum rio português. A legenda que li e construí disse-me que era o Mondego, um rio totalmente português. Mas a árvore lá na paisagem era africana. Aquela variedade de acácias é rubramente africana. Em excesso imaginativo até aproprio a da imagem a uma genuína semente moçambicana, embora a bela acácia daquela variedade, delonix regia, disse-me uma rápida busca que posteriormente fiz, tenha origem na flora da ilha de Madagáscar.
E assim dei mais um ponto de lógica na construção da minha ficção da diáspora das raízes moçambicanas, cá, o seu outro vaso onde se sentem em casa.
Como foi possível que nas margens pedregosas e friorentas do Portugal profundo germinasse uma semente filha duma terra vermelha, um vento mais quente, um mar mais azul? Eu não sei mas ela estava lá. Está lá. E nós, filhos de África, estamos cá.
Por vezes ouço falar com desdém e até acrimónia das mensagens e escritos de saudade por vivências que, não se nega ou esquece, aconteceram em período colonial e sob o manto protector da cúpula, a bolha que rebentou porque a História o quis e os homens fizeram. Depreciam as memórias nostálgicas quando com esta matriz. Em leveza de arrogância chamam-nos, preconceituosamente, e errados, de saudosistas da História.
E tanta vez esses dedos apontados, capazes de erguer machados contra uma árvore que embeleza o quadro, porque não lhe pertence historicamente, são militantes ferrenhos de causas da natureza, ainda bem, mas revelam-se incapazes de compreender que uma memória bela não se apaga nos corações com a mesma facilidade com que se muda de casa e se plantam palmeiras no novo quintal. A saudade é outra e é legítima: temos direito à nostalgia de nós, e a contá-lo.
A acácia rubra nas margens do Mondego é minha irmã. Não sendo originária de Portugal, vive a sua diáspora em serenidade frondosa e namoriscando um rio que não é seu, como eu sendo originário da Covilhã e de Lisboa vivo a minha felicidade ficcional pisando a terra vermelha de Moçambique, servindo-me dela para o meu prazer e orgulho de preservar memórias.
Não o sendo sou-o, e talvez sem esta diáspora a que a História me empurrou fosse um outro, incapaz de reparar por falta de contraste como, qualquer que seja a paisagem, a acácia-rubra é uma árvore bela."
intervenção de Carlos Gil no III Encontro de Escritores Moçambicanos na Diáspora - 17.09.2010
Palavras ditas ...
Se eu gosto de poesia?
Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor... Acho que a poesia está contida nisso tudo."
Carlos Drumond de Andrade
Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor... Acho que a poesia está contida nisso tudo."
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Carlos
ResponderExcluirAcredita que é a 3ª vez que aqui começo um comentário, já se perderam dois......o essencial já havia sido dito, de maneira que desisto de tornar a escrever ou substituir o que havia escrito, é.me completamente impossível na medida que escrevo por reflexo e por impulso, se perco um comentário, outro nunca seria em nada igual ao primeiro!
Assim, me limitarei a afirmar que escrever é o teu Dom e poesia , o teu Dote!
Assim como a poesia é o irmão mais novo de Mia, a prosa, será o Homem!
Teu pensar é semente, e o teu escrever, a sementeira!
Assim como a acácia do Douro foi teu encanto, as sem fim em África, a tua inspiração.....equilibrar estas duas medidas de raciocínio, relativamente aos valores que as mesmas representam para ti, é pura alquimia, aquela que te acorda e nem a face lhe reconheces, és africano desde a primeira acácia lá nascida à primeira folha de suruma plantada nos quintais por detrás das casas cá,o teu espanto, as de lá a tua alucinação!Agora , numa intervenção, tudo isso expor, assim com esse raciocínio verbalizado, é obra para empreiteiro com obra reconhecida como africano cá, sustentada por uma linguagem e uma medida de reflexão.....como africano de lá, um selvagem desabafo do coração!
A institucionalização do destino, imagino!
O blog é imenso, nem duas férias de Verão no tempo de cá chegariam para as albergar todas, bem gostava, mas Carlos te confidencio; sou demasiado lento, lendo e demasiado ocupado para me reconhecer como um entendido.....esquece meu irmão, sou velho de podre e sabedoria mas caduco de memória, uma coisa ficou clara.....tu és o sinal voluntário da revolução silenciosa que se está implantando neste continente, a de uma acácia surpreendente que se transformará noutra excelente! Os sentidos que deixas como pistas são sinais gritados pelo tudo o que tens vindo a dizer, serão os guias dos mais inocentes, só por serem mais novos!
S+ pela responsabilidade que te espera e o que te rodeia espera.....muitas bjecas terão que fazer fila para serem "gozadas!
Pergunto-me agora; quem sou eu para aqui estar a exclamar o que senti sobre o que li e vi, um simples apreciador de odores de acácia e um inalador veterano de suruma, nada mais pretenderei ser, senão te deixar um suspiro de coragem e um abraço de amigo, aquele que poderás estender toda a tua interiorização mesmo que longitudinalmente apresentada....te afianço que me debruçarei sobre quem possas ser, nem que seja para me sentir vivo, assim como tu te sentiste avivado pela presença de uma acácia ao longo do Douro! Ela é a jóia a demonstra e o rio, uma eterna recordação dos seus odores, espalhados como a fome pela terra que nos viu nascer, crescer e de longe, muito possivelmente, nos virá morrer! Abraço meu amigo! Parabéns, uma caligrafia de significados sem fim, é o que o teu texto nos legou! Um estudo a considerar e sobretudo, a respeitar! Assim me despeço, té breve xamuar! r.c.