Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas
Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio
Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação
Não posso adiar o coração.
António Ramos Rosa, in "Viagem através duma nebulosa" (1960), e "Antologia Poética" (D.Quixote, 2001)
mas, poeta, quem não adia? não guarda o calor da esperança numa chama imensa, avassaladora, total, na concha duma mão que ora se crispa e cerra, ora se abre tacteante, os dedos ansiosos por serem tocados e vivificarem o tal fogo mágico? quem, poeta? quem não adia o momento que acredita valer uma vida, no renovar contínuo de ilusões? da ilusão, a maior, e - concordarás, tu, poeta - a mais bela: o Amor. oh, poeta, poeta... mascaramos esses adiamentos de decisões ou mesmo de arrebatamentos. esses sim são as ilusões. as fantasias, os placebos ao duro dia-a-dia. são os adiamentos. o Amor virá. vivemos para esse momento e os séculos não têm nada a ver com isso. o tempo não conta, sabes... quando sonhas, quando te escreves em poema, há relógio sombra ou sol que te marque o tempo? um tempo que só é válido para acreditar na tal aurora que nos renascerá? que nos salvará. não mintas, poeta. todos adiamos. mesmo quando mentimos: sabes que mentimos, não sabes? quando, no desespero das mãos frias, dos dedos torpes por ausências que os iluminem, acreditamos em mentiras que não precisam de séculos para nos serem devolvidas, esbofeteando-nos. (e dói. dói tanto.) quando os medos nos mentem e nos tornam falsos clarividentes adictos a compromissos, acreditando que o tal grito sufocar-se-á e o peso nas costas desaparecerá se sacrificarmos a liberdade de se ser pertença ao engano da conciliação, dos conscienciosos e frios cálculos acerca dum amanhã que ainda não nasceu pois vive-se é hoje, os dedos estendem-se no vazio é hoje, é hoje, e não há bafos de seguranças que os aqueçam entre sol e lua, toquem-nos como eles anseiam e merecem ser tocados: a poesia do amor. o amor, poeta. o amor. e, de bom grado, adiamos o presente quando se acredita no futuro. sempre é sempre, sabias? sabes sim: és poeta e a eternidade é a caligrafia do teu tempo. adeus, poeta, não te incomodo mais. eu adio-me na poesia. por exemplo na tua. eu adiei-me e detesto a minha (detesto-me), só sei gostar de poesia alheia enquanto o tempo não chega, não vem, e moro no frio desta linha seca que me cruza a palma da mão, a tal que (te) espera.
Publicada por Carlos Gil AQUI