Palavras ditas ...

Se eu gosto de poesia?
Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor... Acho que a poesia está contida nisso tudo."
Carlos Drumond de Andrade

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Não há dia, não há manhã


Imagem copiada daqui


Aos meus irmãos Rui, Orlando, Tujinha, Nhonhô e Benny, ao meu tio Mano Lópi e aos meus primo Pira e Fernão, todos moradores da diáspora nesses longínquos fins dos anos setenta e inícios dos anos oitenta do século XX.
À memória de meus amigos e parentes falecidos na Terra-Longe.
A Afonso, Rui, Txikosa e Ká, meus velhos amigos das andanças de Leipzig e de outros lugares então situados aquém do Muro.



Não há dia
Terra
não há noite
que o teu suor em construção
não me venha acariciar
o corpo da saudade em sangue
do seu clítoris fosforescendo
em pardas fulgurações da ilha
em figuras de milho e cabra

Não há dia
Terra
não há tarde
que os meus/teus braços em baía
não se curvem
em amplo amplexo
ao teu/meu abraço de liberdade
assim nascida
assim crescida
qual certeza lavrando-se
na ambiguidade dos Outubros
de novas chuvas

Onde o camponês
com viagens de emigração
na boca da enxada?

Onde o pescador
com vagens de desânimo
desperto!
nos areais da Ribeira da Barca
nas ruas viandantes da Boavista?

Venham
vocês das ilhas vulcânicas

Venham
com os lábios das notícias

Venham
com os que suam
nos andaimes de Lisboa Luanda e Berlim

Venham
com os que labutam
nos portos de Roterdão Dakar e Nanquim

Venham
com os que deambulam
pelas ruas de Nova York S. Paulo e Pequim

Venham
com as calmarias e as catástrofes
do mar alto

Venham
com as muitas tragédias reportadas
do além-mar

Venham
com os sentidos orvalhos e os temidos
temporais dos tempos das as- águas

Venham
Com e as mantenhas das tocatinas
e os cânticos à cachupa

Venham
com os salmos ao violão
e as serenatas à lua companheira

Venham
todos

E digam-me da Praia-Maria
das suas esquinas dos seus pedintes
dos seus parques prédios e padarias novos
e do seu ilhéu
pobre e andrajoso
e do seu ilhéu
de pedras e ervas selvagens
e do seu ilhéu de Santa Maria
debruçado
nobre e majestoso
sobre a curva extasiada
das ondas
das ancas do mar
das ancas do martírio

Venham
serenas sussurrando
como rumorejantes folhas de lemba-lemba

Venham
intermináveis e enigmáticas
como as luxuriantes indumentárias dos ditos das máximas das sentenças
e das outras palavras preciosas do profeta Nho Nacho
e das outras metafóricas asserções das cantadeiras da ilha de Santiago

Venham
espinhosas e endémicas
como a chã sabedoria dos Rabelados

Venham
e alimentem-me
com a viçosa paz
que germina
das chuvas descobertas
no útero da terra

Venham
e saciem-me
com a suculenta paz
que se ilumina
com os sóis inventados
nos nervos das pedras

Venham
e prendam-me
ao poilão da Boa Entrada
ao musgo que à sua sombra
se dissemina
assim ventre
assim verde ventre

Venham
ó ilhéus todos caboverdianos
e contem-me
dos choros dos cantos dos gritos das lamúrias das mágoas dos gemidos
dos soluços das guisas dos lamentos dos desalentos dos desabamentos
de terra dos sismos das enxurradas das irrupções vulcânicas das explosões demográficas do fladu fla dos rumores dos boatos
dos boatos das falácias e das controvérsias
das contendas das estações
nos tempos das ilhas

Venham
ó gentes todas arquipelágicas
e saturem
os meus olhos ausentes
com as novas do que se fez
do que se perfez
sob o eclodir
das vozes basálticas
dos tribunais de rua
querelando
contra a especulação do sal e da terra

e afaguem
e façam flamejar
os meus olhos ausentes
com as novas do que se desfez
com as novas do que se refez
sob os olhares circunspectos
das togas de caqui e cana de açúcar
alegando
contra o açambarcamento do sol
sob os olhares vigilantes
dos ansiosos pastores
da nossa antiquíssima infância de sonhos

Venham
ó poentes e madrugadas
ó crepúsculos e alvoradas
ó nevoeiros e arco-íris

Venham
ó planaltos e ribeiras
ó achadas e fajãs
ó colinas e cutelos
ó cumeadas e ribanceiras

Venham
ó vegetações de secura
ó florações dos tempos todos
sempre escassos de fartura

Venham
ó vales dolorosos da Cidade Velha
ó praças ruas e largos atónitos das Cidades Novas

E tragam
as gentes da Brava
ternas na fala e na esconjuração
dos sortilégios da lonjura
amoráveis na mansa conjura da morna
da cálida espessura dos seus timbres e dos seus gestos
sob a doce névoa da morabeza
com a destemida sageza de Nho Eugénio

E tragam
o Vulcão do Fogo
e a altivez dançante das bandeiras e das coladeiras
tisnadas de lavas e desenvoltura
enamoradas do engalanado relinchar dos cavalos
seduzidas pelo frenético ecoar dos paus de pilão
ritmando sob a longa e insolente elocução
dos rabolos e das curcutições

E tragam
o Topo da Coroa
expectante face à íngreme ossatura
da revolta ansiosa defronte da afónica musculatura
da cacofonia da emudecida oratura da resignação
na boca ainda amordaçada
de ambas-as-ribeiras
todavia festejando o livre o ecoar do colá são joão
efervescendo com a rítmica ebulição dos ventres
das mulheres em êxtase velejando com os veleiros
e os homens das ribeiras em romaria
pelos desfiladeiros e as povoações da ilha
sazonalmente em festa

E tragam
o Pico de António
e o seu rochoso rumor
eclodindo sobre Assomada
e o verde erodido de Santiago
dos seus terreiros capelas e catedrais
dos seus feijoeiros e seus odores
e suas dores vegetais serpenteando o ritmo e a dolência
saracoteando a copiosa alegria do batuco e do funaná
solfejando a memória de pautas e de sinos
ainda afinando os acordes e as melodias das serenatas
em todas as bocas e céus de boca

E tragam
o corpo do Mindelo
explodindo no carnaval e na quotidiana ironia
a alegria da dança o êxtase das vestes
e a irreverência das máscaras
nas faces cálidas nas gruas expectantes
nos mitos devolutos do Porto Grande estirado
na baía emoldurando-se vasta e solitária
sob o majestático perfil do Monte Cara

E tragam
a altaneira memória da Ribeira Brava
e das suas águas revolutas alagando as recentes ruínas
das suas missas cantadas
e das suas lembranças reedificando as pedras solenes
e as tábuas altissonantes do seu Seminário-Liceu

E tragam
os dias e as noites da Boavista do Sal e do Maio
os seus caraculos e pedras de sal
os seus milhos famintos
os seus violões soluçantes

Tragam tudo
e a monotonia explosivamente bela
do transe na dança do torno

Tragam tudo
e a sensualidade exaustivamente bailarina
nos lábios sedutores no morno olhar no velado saracoteio
no enlanguescido e desafiante modo de andar das mulheres
mulatas negras e brancas das nossas ilhas das crioulas da nossa imaginação das musas da nossa inspiração das divas dos nativos
e dos forasteiros devaneios

Tragam as luzes desse cenário
desses risos e ritmos de colexa e coladera
dessas ancas de morna e tabanca
e encham-me os olhos
com sua luz e sede
com sua luz e sede de caminhar
e inundem -me o corpo
com sua sombra e sonda
com sua sonda de esperança

Tragam tudo
e o rosto de Amílcar
e a sua década de guerrilha e metralha
e a sua inteira vida escrutando a chuva
e o seu reverdecido rumor
ecoando entre as ruínas da Cidade Velha
e as congeminações das mamães- velhas

Tragam tudo
e o perfil intacto e limpo de Abel Djassi
e as suas mãos olímpicas
e as suas palavras proféticas
e os seus tornozelos nómadas
e os seus pés errantes
por todas as pasárgadas e anti-pasárgadas
pelos lugares todos onde medra
o sonho de progresso e de liberdade
e se extasiam os seus setembrinos alicerces

Tragam tudo
e a face impoluta de Cabral
e os seus cilícios igualitários
e os seus indícios fraternitários
laborando incansáveis
em lavras nossas e em terras longínquas infatigáveis
a incorrompida esperança a vindoura bonança
para o povo das ilhas e para os povos africanos irmãos

Tragam tudo
e o corpo castanho da terra
e a sua alma salpicada de verde
para estes dias nossos
de espanto e desvario
nas gares da Europa
nos seus portos e aeroportos

Tragam tudo
e as folhos as lágrimas
das nossas mães
até ao nosso regresso
com rosas e agriões
com música e mostarda
com as mãos prenhes de flores
com os pés novamente rachados
em oferenda nos relembrados berços
nas jubilosas festas de guarda-cabeça
ao sétimo dia dos nossos filhos sobrinhos e afilhados
em oração nos túmulos dos nossos pais avôs e bisavôs
em sagração dos novos portais
das casas dos nossos outros parentes próximos
em demanda e em oferecimento de pêsames
aos rostos enlutados dos nossos compadres vizinhos e amigos
em derradeira inumação do umbigo
desde há muito enterrado à sombra
da mangueira da nossa infância…

Nzé de Sant'y Águ

Este poema foi copiado do site da Associação Caboverdeana onde constava a seguinte nota do autor

Versão segunda ou primeira versão revista abreviada
Constitui o presente poema uma versão revista, aumentada e adaptada à situação do Cabo Verde dos fins dos anos setenta e dos inícios dos anos oitenta do século XX do poema homónimo publicado no caderno “A Madrugada da Neblina ou Neve Encharcada de Sol” do primeiro volume de À Sombra do Sol, a minha primeira obra editada em livro em 1990.

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